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quinta-feira, 24 de junho de 2010

VIAGEM AO CÉU DA BOCA


No início dos anos 80 o Brasil viveu uma curiosa transição. À gradual abertura política somou-se certa ânsia de prazer, de sexo, plenamente traduzida em obras literárias lançadas ou escritas na época. "A Fúria do Corpo", obra-prima de João Gilberto Noll, é o exemplo mais crasso. No cinema, filmes antes proibidos como "Império dos Sentidos" e "Garganta Profunda" chegavam às telas e lotavam salas com adultos sedentos por um novo estilo de entretenimento, que hoje nos parece tão banalizado e vulgar, mas que para eles era êxtase, ouro: a pornografia.

Muito pode-se discutir o sentido ideológico da pornografia. Transgressão de costumes, espetáculo misógino, tédio criativo. Particularmente, fico com este último. Diferente do erotismo, no momento em que a pornografia deixa de ser tabu em um espetáculo cinematográfico vira fim em si, escravizando narrativa, elenco e câmera a seus caprichos e à sua avassaladora vontade. Quando observamos um filme pornográfico, o que temos geralmente não é cinema, mas utilização de certos elementos do cinema para a divulgação de sexo explícito.

Exceções existem, e em profusão. Vejam Tinto Brass; algumas produções francesas dos anos 70 estreladas por Brigite Lahaie; o drama sadomasoquista "The Punishment of Anne" aka "The Image"; etc. Mas são pérolas que subvertem o pornô clássico, cerceando-o a uma vontade artística e criativa maior. No Brasil, tivemos "Oh! Rebuceteio" e as melhores produções da Boca. Sem esquecermos que foi exatamente a penetração (ops!) no explícito que destruiu a mais fértil indústria cinematográfica da América Latina.

Considerado marco inicial do gênero no país, "Coisas Eróticas" (1981), de Rafaelle Rossi, venceu a disputa por um golpe de sorte. Acentuando a velha rivalidade Rio x São Paulo, ao mesmo tempo era rodado no outro lado da Via Dutra, no Beco da Fome, aquele que tinha a pretensão de pioneirismo comercial. Acontece que "Viagem ao Céu da Boca" (1981) mostrou-se tão absurdo, tão repugnante, que teve bem mais dificuldades para desembaraçar-se da censura que seu oponente.

Obscura, negada, jogada para debaixo do tapete, a história desse filme terrível precisava ser resgatada. Uma pessoa próxima da produção, que aceitou me conceder depoimento, afirmou ser este "um filme que não deve ser visto. Inclusive dá azar. Todo mundo que participou daquilo na época, depois teve muitas dificuldades na vida". A fonte pede anonimato. Brincadeira, exagero -- ou não -- "Viagem ao Céu da Boca" merece o epíteto de uma das produções brasileiras mais malditas de todos os tempos.

Quando finalmente foi liberado, em meados de 1983, o rival "Coisas Eróticas" já era lenda. Apelou-se então para uma publicidade sensacionalista, dando conta de que fora "exibido nos Estados Unidos, Europa e Japão com mais sucesso que Calígula". Invencionice tosca, pois, lançado em algum outro lugar que não as salas especiais das grandes metrópoles, este primor da demência humana seria certamente proibido, banido, e seus distribuidores chamados às vias legais. Mesmo em um período de frenética tolerância artística como a virada dos anos 80, quando o home video pornô transformava a indústria sexual norte-americana e européia em um pátio de milagres. Assistam a "Hardcore Life" (1979), dirigido por Paul Schrader, e entenderão melhor o que estou falando.

Mas o que há de tão horrível em "Viagem ao Céu da Boca"? Nos créditos, roteiro de José Louzeiro, música de Zé Rodrix, direção do pornochanchadeiro Roberto Mauro. Percebe-se no plot uma certa tentativa de crítica social. Na fotografia, iluminação de atmosfera onírica. Stella Valadão, mulher de Jece e irmã de Nelson Rodrigues, faz a continuidade. Onde mora, então, o horror de "Viagem ao Céu da Boca"?

Nas longas sequências de tortura, sadismo e pedofilia. No óbvio oportunismo do diretor, Roberto Mauro, em usar argumento de um dos melhores roteiristas do país, para toscamente arrombar as portas do permissivo com uma das piores produções da história do cinema mundial. Ao tentar inaugurar o explícito, Mauro inaugurava antes certa espécie de extremismo, como se quisesse iniciar a liberação de costumes pelo limite final da aceitação humana.

Dito assim, "Viagem ao Céu da Boca" pode parecer bastante divertido. Mas na maior parte do tempo transparece tedioso, refém dos jogos sexuais. Nilo Barra (Eduardo Black) é um bandido que invade a residência de Mara (Bianca Blond), grã-fina cujo marido está de férias e que mantém na casa, como agregada, o travesti Paula (Ângela Leclery, a mesma boneca do filme de Carlo Mossy, "O Sequestro"), amante do marido.

Aqui, a história pára. São 45 minutos de sevícias e aflições horrendas sobre a mulher e o travesti. Quando o espectador já não aguenta mais, quando se propõe ele mesmo a sair do cinema e ligar para a polícia, eis que surge Eisinha (Eliane Gomes), menina de doze ou treze anos, calçando patins, que se oferece voluntariamente para amante do bandido.

Nesse meio tempo, Paula parece ter batido as botas. Volta como uma pomba-gira desvairada, a câmera faz piruetas, efeitos luminosos piscam freneticamente, e, através dos poderes da macumba, dá um nó no pênis do malfeitor. Em seguida, o bandido desperta na prisão e começa a ser torturado por policiais. Tudo não passou de sonho -- ser algoz, em vez de vítima -- entre uma sessão e outra de tortura.

Dos bastidores desta saga, poucas histórias restam. A melhor delas é que Bianca Blond e Eduardo Black não se sentiam atraídos um pelo outro, e as cenas quase não puderam ser feitas. Outra, que o travesti Ângela Leclery foi escolhido por suas capacidades ativas e passivas, em uma seleção de elenco que contou com a fina flor do submundo carioca.

Por uma dessas razões do destino, nos últimos anos me tornei vizinha de José Louzeiro, suposto roteirista do filme. Quando concedeu entrevista sobre sua carreira para o Estranho Encontro, em maio de 2006, nem eu nem Louzeiro recordamos sobre "Viagem ao Céu da Boca". Nunca é tarde. Interfono para meu querido vizinho e lhe faço uma visita:

- Louzeiro, me fale um pouco sobre "Viagem ao Céu da Boca", aquela direção do Roberto Mauro, que você escreveu o roteiro.

- Escrevi um conto sobre assuntos eróticos para uma revista, não me lembro o nome, chamado "Viagem ao Céu da Boca", uma história bem sutil. Jamais pensei que fosse virar filme. Entre erotismo e sexo escrachado, a diferença vai bem longe. Acontece que o diretor da revista foi abordado por esse cidadão, Roberto Mauro, que eu não conhecia. Conversamos e não pedi referências do moço. Quando é um dia, encontro a atriz, e ela chorando. "Imagine, eu vim do Paraná, queria entrar pro cinema, e estou chocada, estou decepcionada."

- Então o filme já havia sido feito e você nem escreveu o roteiro?

- Não fiz o roteiro, nem sei quem fez. Era pra ter sido baseado no meu conto. Aí eu fui ver, já estava na fase de edição e fiquei horrorizado. Sexo da forma mais violenta, triste. Eu que não sou de briga, briguei. Disse pra ele tirar o meu nome daquela imundície, ele jurou que ia tirar e não tirou. Deixei de falar com esse cara. Parece que antes de morrer ele queria falar comigo, mas eu não quis. Era mal pagador, não me pagou um tostão, e o pior é que ele queria fazer outro filme. Uma experiência que eu lamento muito que tenha acontecido comigo. Até quero publicar um livro de contos e incluir este, para verem como deveria ter sido. Roberto Mauro foi um cineasta de triste memória, uma vergonha para a classe.

Uma das razões de "Viagem ao Céu da Boca" ser pouquíssimo divulgado passa pelo bom senso: lançado em circuito comercial naquele distante 1983, assistido por qualquer um que portasse carteira com idade legalmente maior, hoje o filme é um crime ambulante. "Coisas Eróticas", o outro pioneiro, pode ser tão aborrecido, mas atravessou as décadas domesticado, quase ingênuo.

Esforcei-me na pesquisa, com a certeza de que uma compreensão plena somente revivendo ânimos de outrora, quando produtores e diretores espertos aproveitavam a liberdade conquistada e metiam o pé na porta, empurrando um tigre para a liturgia dos sete gatinhos. Paradoxo histórico, o futuro tornou esses esforços nauseabundos cada vez mais tabus. Cada vez mais malditos. Para estômagos de aço, pois nem os fortes sobrevivem.
Texto escrito por Andrea Ormond, publ icado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

UMA MULHER PARA SÁBADO


"Uma Mulher Para Sábado" (1970) é daqueles filmes que certos diretores paulistas, no final dos anos 60 e início dos anos 70, pareciam ter prazer em realizar.

Caminhando em tendência oposta às investigações de estéticas marginais e aos questionamentos estritamente brasileiros, obras como esta, "Cordélia, Cordélia", de Rodolfo Nanni, ou mesmo "O Quarto", de Rubem Biáfora, hoje praticamente esquecidas, surgiram em um período difícil de radicalismo e exacerbações, buscando no intimismo e no drama burguês -- em sentimentos universais -- narrativas elaboradas, densas e adultas, com clara inspiração no cinema japonês dos anos 50 e 60, em diretores europeus (Bergman, Antonioni), e no marco "Noite Vazia" (64), de Walter Hugo Khouri.

Em "Uma Mulher Para Sábado" elementos khourianos surgem com clareza -- o jovem diretor, Maurício Rittner, antes esteve na equipe de "Corpo Ardente" e "Noite Vazia". Lá estão a busca do absoluto, a angústia existencial que conduz a uma necessidade de amor incondicional; e também a tensão narcisista masculina, a disputa muda -- e histérica -- entre homens pela posse impossível do mistério feminino.

Baseado no romance "As Regras do Jogo", de Mário Kuperman, o roteiro escrito a quatro mãos pelo próprio escritor e por Rittner, narra a fuga de quatro jovens, Doriane (Adriana Prieto), Nando (Miguel Di Pietro), Loco (Flávio Portho) e Inês Knaut (tratada como "Moça número 1"), para um refúgio paradisíaco em Ilhabela, onde -- sob o patrocínio do dinheiro de Loco, ou melhor, das empresas de seu pai -- dão vazão a uma espécie de catarse de final de semana, antes de voltarem na segunda-feira para a mediocridade da vidinha cotidiana.

Vida que para Nando, representante comercial de remédios, é simbolizada pela convivência opressiva com uma namorada pobre e limitada (Júlia Miranda), com quem se encontra às escondidas no quarto onde mora. Tendo amigos ricos, apaixonado por Doriane, o atormentado Nando quer fugir à realidade que o engole; por outro lado, Loco está prestes a assumir os negócios da família, o que representará o fim dos "anos de juventude" e conseqüentemente, da amizade entre os dois. Afinal, como o próprio Loco deixa claro: "Com dinheiro, sou um excêntrico; sem dinheiro, um marginal".

É fácil rifar o amigo e apoderar-se da namoradinha cobiçada. Para tanto, Loco faz a barba, flerta preguiçosamente com Doriane e pouco resta a Nando do que aceitar passivamente o casamento das duas fortunas, a realidade imposta. Sua namorada será sempre a telefonista com quem se encontra para o sexo rotineiro e sem amor e sua vida será sempre a de carregar malas e esperar na sala de espera dos consultórios médicos.

Exibido muito raramente no Canal Brasil, "Uma Mulher Para Sábado" tem belas locações, música de Rogério Duprat -- e Adriana Prieto, aos 20 anos de idade, no período em que rodava também "Palácio dos Anjos". Além de Ester Góes, lindíssima, aos 24 anos, fazendo ponta minúscula como secretária.

Em última instância, "Uma Mulher Para Sábado" servirá de introdução a filmes mais difíceis sobre temáticas próximas -- como "O Último Êxtase" de 72, por exemplo -- e ratifica a certeza que o distanciamento histórico nos proporciona, de que em São Paulo sempre se produzia (ainda se produz) a inteligência mais lúcida e madura do país -- o que se refletiu (e ainda se reflete) na complexidade e riqueza do cinema ali realizado.
Texto escrito por Andrea Ormond, publ icado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

PUREZA PROIBIDA


Terceiro longa de Alfredo Sternheim, “Pureza Proibida” (1974) não guarda muitas semelhanças com os anteriores “Paixão na Praia” (1971) – resenhado neste site – e “Anjo Loiro” (1973).

Uma das poucas formas de aproximação entre este conjunto de filmes surgiria com a presença de personagens femininas destacando-se como o fio condutor da narrativa: Norma Bengell (em “Paixão...”), Vera Fischer (em “Anjo...”) e Rossana Ghessa (em “Pureza...”).

Ainda assim, as três protagonistas desempenham funções diferentes, em ambientes e motivações diferentes. A irmã Lúcia (Rossana) – baseada na peça “A Branca e o Negro”, de Monah Delacy (intérprete da Madre Superiora e co-autora do roteiro, ao lado de Sternheim) – influencia uma locação rural por excelência, em contraposição às metrópoles de “Paixão...” e “Anjo...”.

O sexo depressivo de Norma, a fúria de Fischer também não podem ser associados à sensualidade represada e inacessível da pequena Lúcia, noviça que chega a um vilarejo e transforma a vida das crianças, dos pacientes do hospital, das colegas de convento e sobretudo da colônia de pescadores – para o bem, ao aproximar-se de Chico (Zózimo Bulbul); para o mal, ao causar o ciúme da psicopática Anésia, ex- namorada do rapaz.

Bulbul aos 37 anos rivaliza em carisma com Rossana e Carlo Mossy (no papel de Padre) – casal de “Lucíola, o Anjo Pecador” (1975), também dirigido por Sternheim, mas que em “Pureza Proibida” fica afastado tanto pela barreira religiosa quanto pelos cortes que a participação de Mossy sofreu após um grave acidente de carro durante as filmagens, que quase lhe custou a vida.

Percebe-se da parte de Sternheim a delicadeza na composição dos quadros que somada à fotografia de Ruy Santos transforma as praias em algo pictórico, como se construído à mão, ora cinza-chumbo – em especial a cena em que Anésia caminha em direção à câmera –, ora solar – tonalidade esperada em se tratando do lugar paradisíaco.

“Stromboli” de Rosselini surge como identificação mais direta, numa postura algo neo-realista. Entretanto, a identificação é assimilada pessoalmente, no total das características do diretor – aqui obcecado em uma falsa simplicidade no filme, que engana apenas aos mais desavisados, pois em “Pureza...” há um mundo de referenciais intricados por detrás da superfície.

A começar pela brasilidade do roteiro – Lúcia visita terreiros de candomblé, festas pagãs –, passando pela trilha sonora de Edino Krueger e pela montagem de Ismar Porto – roteirista, montador e diretor prolífico no cinema brasileiro –, o filme é ponto altíssimo da RG Produções (vulgo Rossana Ghessa Produções) e transpõe o esquema clássico da “moça ingênua que apaixona-se, alegra pessoas e quebra preconceitos”.

Há, por exemplo, o pessimismo do final – a morte trágica de Chico, que não é punição pelo seu namoro inter-racial com Lúcia, mas a chave para que o roteiro expresse o fato de que até em lugares minúsculos a suposta “pureza” deixa de existir, e é antes disso uma idealização injustificável. Lúcia também é apedrejada pelos meninos que brincavam e davam risadas com a garota que, dentre outros percalços, fôra violentada por um médico bastião da moralidade.

Ruth de Souza encarna a Mãe Cotinha, dona do terreiro de candomblé, matriarca que atende pelo lado folclórico do enredo, sem se transformar em pastiche. A roda comandada em determinado momento por Mãe Cotinha parece ter sido deixada rolar a frame solto pelo diretor, ciente que assistia a uma cena original, in loco, ao invés daquilo que em certos filmes é vendido como “macumba pra turista”. Os atores captam a mesma sensação, o resultado fica acima da média.

Além disso, um detalhe interessante está na relação entre Chico e Lúcia. O estereótipo do negro viril acaba sendo quebrado pelo tom senhorial da freira, comandando – e sendo correspondida nesta iniciativa – as atitudes do pescador, evitando-o, chamando-o, abraçando-o.

Como conclusão, resta que o triângulo Lúcia-Chico-Anésia, costurado por cada ponto técnico e criativo da obra, faz de “Pureza Proibida” a junção de utopia e realidade, poético e cerebral ao mesmo tempo, numa investigação do que seja a sexualidade em guerra. Guerrilha psicológica, sem a promessa do amor livre, e cheia das maldades a que cada ser humano mal intencionado tem direito.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

ROMANCE DA EMPREGADA


A empregada doméstica é uma instituição brasileira, tanto quanto o samba e o futebol. Verdade que novos tempos politicamente corretos tentaram matar a figura da empregada no imaginário corrente, limitando seu poder de ação e influência a uma simples prestação de serviços. Só quem conviveu -- ou convive -- com o dionisíaco mundo das domésticas, percebe o riquíssimo universo de histórias e possibilidades que se oculta por trás da profissão, onde o conflito amor e ódio é mais do que simples luta de classes, mascarando uma saga freudiana de razões ainda não bem estudadas.

No Rio de Janeiro dos anos 80, tal como a piada dos latinos na Califórnia, se as domésticas desaparecessem a cidade enlouqueceria. Aliando a possibilidade de mão-de-obra descartável -- típica de um país subdesenvolvido -- com informalidade nas relações trabalhistas, famílias da Zona Sul contratavam duas ou três "auxiliares" -- uma tríade babá-cozinheira-arrumadeira era comum -- e a depender do tempo de serviço e temperamento, esses laços se estreitavam, ao ponto de as domésticas controlarem o orçamento da casa e a educação básica das crianças.

Como tudo no Brasil, forjava-se uma relação injusta, sem qualquer segurança ou vínculo empregatício real, e que por isso mesmo criava uma subcultura de leis não-escritas, conceitos e preconceitos.

Pouco explorado pelo cinema brasileiro, este fenômeno paternalista e pitoresco guarda o interessantíssimo "Romance da Empregada" (1987), direção de Bruno Barreto e roteiro do dramaturgo Naum Alves de Souza. Sucedendo o esquisito "Além da Paixão", é certo que Barreto quis fazer um filme popular, de fácil compreensão do público. Para quem esperava uma comédia, é tão engraçado e hilariante quanto "A Servidão Humana" de Somerset Maugham.

Brilhante e simples, o mote publicitário: "Uma história de amor sem amor", sobrevive preciso às intenções do roteiro. Fausta (Betty Faria) é uma doméstica carioca, moradora de Gramacho, distrito de Duque de Caxias, seduzida por homem idoso, Zé da Placa (Brandão Filho), que vive de bicos na Central do Brasil e promete à pobre mulher uma ajuda financeira, em troca de atenção e sexo. Fausta é casada com João (Daniel Filho) e passa a traí-lo com Zé da Placa, embora não ame ninguém, só ela mesma.

De uma época em que os pobres ainda podiam parecer tão maus quantos os ricos no cinema brasileiro, "Romance da Empregada" chegou a ser acusado de carregar nas tintas da vilania de Fausta. Oferecia-se, então, a tese de que o olhar "classe-média" de Barreto era de caricatura e pessimismo. Em defesa do diretor, vale dizer que "Romance da Empregada" é um drama, e como drama deve ser visto. E que com a corda no pescoço, sem emprego, casa e móveis perdidos pela chuva, Fausta e João não poderiam agir propriamente como o casal 20, Jonathan e Jennifer Hart.

Anunciando a tempestade final e simbólica, chove bastante no decorrer das cenas, inclusive em uma visita ao Planetário da Gávea. Fausta às vezes oferece um pouco de carinho ao velho (Brandão Filho tinha na ocasião 77 anos), cuida para que ele não apanhe resfriados; mas, no segundo seguinte, pragueja contra sua dependência e fragilidade. Enquanto isso o marido João tenta atendimento em um hospital público e chora, acometido do mesmo ânimo carente.

O que permeia a vida dos protagonistas é esta certeza intuitiva do desamparo. Não há Estado, não há garantias trabalhistas, não há nada. As idas e vindas de Fausta no trem em direção à "casa da madame" (da qual chega a ser demitida) só ressaltam um abandono anônimo, que ela sublima com idolatria datadíssima à cantora Tina Turner e, em cena preciosa, ao tomar o apartamento, as roupas e o telefone da patroa. "Estou usando até as calcinhas dela!", afirma, no êxtase lésbico de quem capturou um tesouro.

Maltratando a concorrência, o suburbano "Mercado de Móveis Madureira" faz aparição gloriosa, quando Fausta compra cama e colcha ("De chenile!"), novas e à prestação. Nunca permite que o marido estropiado usufrua daquele recém-adquirido bem, e a quase tudo que possui devota egoísmo histriônico. Na esperança de tê-la somente para si, Zé da Placa manipula estas fraquezas e lhe cobre de presentes. O melhor: um par de fones azuis com antena e rádio AM-FM, daqueles que eram contrabandeados do Paraguai. O pior: uma domingada em Paquetá, ilha-bairro do Rio, onde ela se demonstra uma mulher corajosa, quiçá suicida, tomando banho em plena baía da Guanabara.

No avanço do jogo de interesses é que o filme deprime e induz ao imperativo de que, para salvar sua alma, Fausta ofereça ambos -- marido e namorado -- ao sacrifício. Goethe concordaria que o delírio em que João chafurda na lama e chama Satanás só confirma este feminismo atávico, manipulado ao extremo de parecer ridículo, embora ainda verossímil.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

OH! REBUCETEIO


A glória e a decadência da Boca do Lixo – o mais importante centro produtor de cinema brasileiro nos anos 70 e 80 – encontram sua encruzilhada na produção de filmes de sexo explícito a partir de 1981, quando Raffaelle Rossi lança “Coisas Eróticas”, sucesso de público por conta das cenas “explícitas” enxertadas pelo diretor.

No embalo de “O Império dos Sentidos”, filme de Nagisa Oshima que foi exibido no Brasil através de um mandado judicial, os produtores da Boca haviam descoberto o caminho das pedras – e passaram a realizar filmes com conteúdo pornográfico, que burlavam a proibição oficial e faziam bilheteria antes que a censura conseguisse reagir.

Some-se a isso a esculhambação brasileira, que permitia que os filmes pornôs – brasileiros ou estrangeiros – passassem em qualquer cinema das grandes cidades (não apenas em salas especiais, como ocorre na maioria dos países do mundo), e gradativamente o cinema da Boca fez a transição dos filmes de conteúdo erótico, mas cheios de enredo, para o apelo superficial à pornografia pura e simples.

Paradoxo, aquilo que pouco antes se mostrou uma saída viável para gerar mais dinheiro, foi justamente o que matou a indústria auto-sustentável da Boca do Lixo paulistana. Massacrados pelas produções pornográficas estrangeiras, que chegavam aqui a preços mais baratos, os pornôs nacionais foram deixando de ser feitos e no final da década de 80, a Boca – intoxicada, estigmatizada e esvaziada pelo modelo fácil e de baixo custo – finalmente desapareceu.

“Oh! Rebuceteio” (1984) é exemplar típico deste período de exceção do cinema brasileiro, mas que, produzido e dirigido por Cláudio Cunha, salva-se na fronteira entre o inteligente e o execrável.

Cheio de referências sutis a universos culturais estranhos ao público que o consumiu, não é errado dizermos que vinte e poucos anos depois, o filme ainda não fechou seu ciclo, permanecendo em busca de reconhecimento, a ser revisto em mostras e exibições cult com o mesmo olhar cuidadoso que devotamos a Tinto Brass ou às produções setentistas estreladas por Brigitte Lahaie.

Repleto de meta-linguagem, espécie de “A Chorus Line” sem vergonha, “Oh! Rebuceteio” nos remete a todas aquelas histórias que ouvimos desde a infância sobre a liberdade sexual no meio artístico, notadamente no teatral. É este o mote para o semi-exploitation de Cunha: uma peça, um diretor com idéias de psicanálise reichiana e um elenco de jovens entre 20-25 anos ávidos pela fama.

O próprio Cláudio Cunha faz o papel de Nenê Garcia: diretor do filme interpretando o diretor da peça. O contraponto são figurantes, corpos em fúria. A atriz que vai ganhar o papel principal, sua mãe, o vilão homossexual enrustido. Nada, no entanto, é levado a sério e todo o conflito é relativizado (e, pode-se dizer, anestesiado) nas intensas orgias de sexo grupal, em todas as combinações possíveis.

Nenê Garcia é um guru da liberdade, ordena imperativamente que o grupo se solte, se liberte, enquanto ele mesmo se mantém, com pudor, nas sombras. O elenco está em suas mãos, concretizando o comando de “liberdade total” exigido pelo mestre. Transam até cansarem, em cenas de plástica cuidadosa, realizadas por alguém com evidente talento para filmar. O grande cuidado artesanal torna o sexo agradável de ser assistido, mesmo pelo espectador que não esteja minimamente interessado em voyeurismo. E os diálogos são claros, engraçados e fazem pensar além da história narrada.

Notável também é pensarmos que “Oh! Rebuceteio” foi rodado em meados de 1983, mais ou menos na época em que a Aids se espalhava pelo mundo. No Brasil chegaria com força total por volta de 1985, de modo que o discurso pesado a favor do sexo sem freios era uma espécie de canto dos cisnes, tornando o filme ainda mais interessante.

Baseado na peça “Oh, Calcutá!”, o título – que por extensão é o título da peça dentro do filme – soa quase inesquecível, lembrando um jogo de palavras barato ou o famoso termo lésbico que designa a ciranda de sexo entre várias mulheres. Mas citado durante a trama, ficamos sabendo na cena final que "rebuceteio, no dicionário, é traduzido como grande confusão. Grande confusão é a própria vida, é isto aqui...um rebuceteio” – todos se congratulam e o pano se fecha.

Com trilha-sonora de Zé Rodrix, montagem de Éder Mazzini (o mesmo de “Amor Estranho Amor” e “Anjos do Arrabalde”) e filmado no Teatro Procópio Ferreira – onde Cláudio Cunha estava em cartaz com a peça “O Analista de Bagé” – este foi o último trabalho do diretor na tela grande. Quando nos anos seguintes Cunha se dedicou ao teatro, também com grande sucesso, deixou para trás uma filmografia pequena mas diversificada, que com certeza será lembrada entre os altos e baixos na produção daquele tempo pela criatividade e ousadia no trato cinematográfico.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

ATÉ QUE A VIDA NOS SEPARE


Vamos iniciar uma série de filmes dos anos 90, dando preferência aos títulos que, apesar da qualidade, permaneceram obscurecidos por outros, às vezes piores, porém merecedores das bençãos da crítica por contingência ocasional. Devido à relativa proximidade das produções, um diagnóstico me parece fácil. O Brasil produziu em pequena escala (ainda produz) ótimos filmes. Só não viu quem não quis – ou, na maioria das vezes, porque não pôde.

Excluindo a idéia -- totalizante, otimista -- de "Retomada" a partir de 1995, creio que a lógica para se entender a filmografia do fim do século XX encontra-se um pouco antes, na década de 80. Com a lenta volta da democracia, vivemos o paradoxo de um retorno também gradual a valores conservadores, caretas mesmo, que o cinema dos anos 70 abominava e, de uma forma ou de outra, tinha prazer em atacar.

Nos estertores da década de 90, o serviço estava completo: toda e qualquer referência ao libertarismo do sexo e das drogas foi suplantada por aquilo que é correto chamarmos de "estética moralista". E o que seria essa "estética moralista"? Diferente da produção européia e até latino-americana, os filmes brasileiros se alinharam cada vez mais ao ideário do cinema norte-americano, baseados na filosofia de que precisavam "encontrar um público perdido".

A busca resultou em nada; ou melhor dizendo, em profunda limitação para a cinematografia de um lugar tão culturalmente rico e complexo. Filmes-chave do período, como "Central do Brasil", são matrizes de repetições intermináveis, por conta desta obsessão messiânica de que "algo precisava ser reinventado". Perdeu-se ótima chance de criar no país uma alteridade, uma diversidade; trocada pela denúncia social compulsiva e pela excessiva preocupação em negar o passado – considerado obsceno e maculado por vícios, nunca por virtudes.

Ainda assim, restam flores. Inaugurando a série, escolhi "Até Que a Vida Nos Separe" (1999), dirigido pelo artista plástico e publicitário José Zaragoza. Espanhol naturalizado paulistano, ex-aluno da Escola de Belas Artes de Barcelona, Zaragoza fez sobre o roteiro de Leopoldo Serran um apanhado dos jovens na faixa dos trinta anos, com um olhar específico – e apaixonado – à cidade de São Paulo.

Cheio de falhas adoráveis, "Até Que a Vida Nos Separe" traz a metrópole como protagonista incidental, na linha que Ugo Giorgetti consagrou. Ambos oriundos da publicidade, ambos relativistas de sua visão apaixonada, a diferença reside no fato de que o espanhol tentou, mas não logrou êxito, em ser crítico de costumes – provocando no espectador a impressão de um estilo frouxo, a ser maturado, relevando suas ótimas intenções.

A história de cinco amigos – João (Alexandre Borges), Lulu (Betty Gofman), Pedro (Norton Nascimento), Paulo (Marco Ricca) e Maria (Júlia Lemmertz) – perde-se às vezes no excesso de protagonistas, mas sobrevive pelos pequenos dramas de cada um. O melhor deles é o de Paulo, em dúvidas quanto a sua homossexualidade, que contrata um garoto de programa para se libertar. Em seguida temos Pedro, negro bem-sucedido, que também contrata -- atenção para a importância do dinheiro -- prostitutas louras para sexo ocasional.

João, Lulu e Maria vivem basicamente a procura de um grande amor – João e Maria apaixonados um pelo outro, e Lulu a vítima de uma armação dos amigos, que contratam (pela terceira vez, a obsessão pelo sexo remunerado) Tonho (Murilo Benício) para ser seu acompanhante por 24 horas.

Os cinco têm na base dos conflitos um problema familiar, que culmina em tragédia com João. Verborrágicos, discutem todo o tempo esses dramas e desdobramentos. Lembra um pouco o velho seriado "Ciranda, Cirandinha", da Tv Globo, revisto para o ambiente yuppie, narcisista e mercenário dos anos 90.

Resoluto em mostrar São Paulo, o diretor consegue tomadas lindíssimas, colocando cada um dos heróis para viver em apartamentos e lofts deslumbrantes. Guarda aí outra idiossincrasia típica do cinema paulista 80-90: aquela que enxerga a urbe como microcosmo pairando acima da realidade do país -- espécie de Nova York acidentada nos trópicos. Traz influências do neon-realismo manipuladas em algo contemporâneo, releitura possível até em filmes recentes como "O Signo da Cidade" (2007).

Qualidade bem-vinda, "Até Que a Vida Nos Separe" não caiu na tentação moralizante, retratando sem pudor o consumo de cocaína e o erotismo, principalmente entre Pedro e suas inúmeras parceiras. Alguns ajustes o fariam menos conciliador, esquemático e piegas; mas seria exigir muito que fosse diferente. Importa é que José Zaragoza fez um filme sincero, honesto e sem medo, desses cada vez mais raros. Promete fazer outros dois e completar uma trilogia nos próximos anos, o que nos deixa ansiosos por melhor cinema.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

OS MACHÕES


Espécie de "Shampoo" brasileiro - três anos antes do filme de Hal Ashby se tornar clássico instantâneo dos anos 70 - "Os Machões" (1972) explora uma realidade que, naquela época distante, já era febre entre as mulheres: os feéricos salões de cabeleireiro, visitados como continuação da sala de estar, onde o cabelo, a unha e os cremes viram nobres justificativas para a convivência - pacífica ou não - entre os seres do sexo feminino.

Como bons malandros cariocas, o trio Didi (Reginaldo Faria), Telecão (Erasmo Carlos) e Juca (Flávio Migliaccio) tem por este sexo feminino aquela espécie de furor que Nelson Rodrigues descreveria como iracundo, quase obsessivo, antecessor em cinco minutos à gênese da humanidade. Certo dia conhecem uma jovem mona, que narra as maravilhas da convivência nos salões de beleza, cheios de lindas mulheres nas suas dependências. Basta para que os amigos decidam imediatamente entrar para a profissão de cabeleireiro.

As comédias de Reginaldo Faria têm a qualidade de prenderem a atenção do espectador do início ao fim; com "Os Machões" não é diferente. Extremamente cuidadosos na produção, os irmãos Faria usam e abusam do auxílio luxuoso da trilha-sonora de Erasmo Carlos e da onipresente e paradisíaca cidade, dessa vez emprestando um deslumbrante apartamento no alto da Avenida Niemeyer, onde Erasmo é visto dormindo, assediando a arrumadeira e consumindo ovinhos de codorna para melhor desfrute da vida.

Reginaldo (repetindo o personagem Didi, de "Pra Quem Fica, Tchau!") poderia rivalizar em beleza com o trintão Warren Beaty de "Shampoo", e não faz por menos, se envolvendo com mãe (Neuza Amaral) e filha (Kate Hansen, como diria Ibrahim Sued, "linda de morrer"), além de metade da população do estado da Guanabara.

Juca, o terceiro amigo, aos poucos vai se libertando do oportunismo e encontrando seu verdadeiro self. Provavelmente, se os outros dois acompanhassem o conflito sofrido por ele, o filme ganharia, além de humor, também uma dose maior de inteligência. Didi chega perto, flerta com o professor gay, mas para tristeza de muitos, mantém até o fim o armário trancado consigo dentro.

Quem gosta de moda conseguirá apreciar (sob o patrocínio de Helena Rubinstein) um pouco do funcionamento dos salões e das tendências de beleza, apesar do tom um tanto caricato. Enquanto correm atrás de aprenderem o ofício para melhor conhecerem "as madames", os três rapazes fazem uma incursão bem documentada por locais datadíssimos, que na tenra infância da geração entre 25-35 anos de hoje ainda existiam.

E se todas as gerações que cresceram no Rio de Janeiro em conflito a partir dos anos 80, tomarem como referência essas comédias urbanas cariocas do passado, concordarão de vez com a máxima saudosista de que "Ipanema era só felicidade". Realidade ou idealização, vale lembrar que a dolce vita da Zona Sul da antiga capital do país é quase um lugar-comum nas manifestações culturais brasileiras do século XX.

De Reginaldo Faria a Mozael Silveira, os diretores populares dos anos 70 souberam capitalizar esse paradigma com maestria -- no caso de Reginaldo, transformando histórias divertidas como "Os Machões" e "Pra Quem Fica, Tchau!" em revistas de atualidades da metrópole, apresentadas na medida certa de um produto consumido pelas grandes massas. Não é de se espantar que pareçam ingênuas por um lado, e por outro envelheçam cada vez melhores e mais exuberantes.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

ANJOS DO ARRABALDE


A cinematografia de Carlos Reichenbach requer um alerta permanente. Ao assistirmos a seus filmes cruzamos as fronteiras da Mira-Celi tropical, ilha em que Thomas Moore, Bakunin, Fuller, Godard e Reich reúnem-se para conversar. Têm, à sua direita, Luis Sérgio Person – figura importante nos anos de formação do diretor –; à esquerda, A. P. Galante – produtor de muitos projetos. No meio de tudo, Reichenbach, cuja ânsia de fazer cinema é a peça de resistência de uma obra a ser ainda muito estudada.

Escolhi “Anjos do Arrabalde: As Professoras” (1987) para iniciar este trabalho de investigação, porque encontro nele uma ponte para a alma feminina, temática que já havia sido delineada anteriormente em “Lilian M., Relatório Confidencial” (1975) e é retomada em “Garotas do ABC” (2003). Entenda-se que o universo ficcional do criador não é dividido em fases estanques, as informações dialogam, e o critério que utilizo é meramente organizacional, de modo a facilitar a abordagem das personagens centrais de “Anjos...”: Dália (Betty Faria), Rosa (Clarisse Abujamra), Carmo (Irene Stefania) e Ana (Vanessa Alves).

Dália e Rosa são professoras do sugestivo “Colégio Estadual de 1o. Grau Luis Sérgio Person”. O “arrabalde”, a periferia, em que vivem, está à margem da capital paulista, transformando-se em uma espécie de paróquia, na qual violência e primarismo são elementos constantes.

O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de “Filme Demência”), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.

A violência é, por outro lado, fonte de discussão do início ao fim da trama. Assistimos, já no primeiros segundos, ao desfecho de um estupro, em que a vítima (Ana), largada no matagal, desmaia, e em seguida surgem os créditos de abertura. Afonso (Ricardo Blat), irmão problemático de Dália, drogado, é currado por traficantes, aumentando ainda mais a condição de ente enigmático, zumbi que finalmente deságua o desespero na belíssima cena em que procura os seios da irmã, em clara nostalgia edipiana.

Há uma qualidade naturalista no filme – “eu me sinto bem na periferia, aqui eu sinto cheiro de gente”, diz Carmona (Emilio di Biasi, Mefisto de “Filme Demência”). Ela é combinada às conhecidas epifanias, marcantes na trajetória do diretor.

Um simples final de semana na praia, por exemplo, é retratado com toques experimentalistas. O lúmpen tira foto, come frango, faz o ritual de praxe, mas a montagem acentua a estupidez do circo. Carmona, amante casual de Dália, funciona aqui como o bufão embriagado que em momento de catarse esbraveja contra todos. Convém lembrar que a rubrica de “Week-end” é colocada na tela para marcar este capítulo da ida ao litoral, ensejando uma evidente subversão dos filmetes comerciais que vendem a imagem das famílias felizes em temporada de férias. Por um instante imaginei ter visto ali perto, na mesma rua, Roberto Miranda (alter-ego do diretor) antes da chegada da espiã-jornalista, em “A Ilha dos Prazeres Proibidos”.

O argumento original de “Anjos do Arrabalde” deve-se em parte ao que Reichenbach ouvia de Ligia, sua esposa – dentista da rede de saúde pública, aparece rapidamente em uma ponta no filme, como a dentista do colégio. A brutalidade demonstrada nas telas é, portanto, fruto de empirismo e apuramento estético, que transforma em obra de arte o cotidiano da baixa classe-média.

No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar desapercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na “Ilha....” há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em “Anjos...” concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.

A aluna lê em voz alta com o livrinho em punho, Rosa repete o texto em solilóquio, corta lentamente os pulsos com uma navalha, é vista – alguns quadros depois – à beira de um precipício, numa aparição fantasmagórica. Ressalte-se que a tensão criada pelo autor nesse contexto é importantíssima, fazendo emergir símbolos claramente contraditórios, envolvendo punição, morte, vazio, de um lado; e, de outro, amor, infância e suposta doçura das “tias” em sala de aula.

Um aspecto a ser, por fim, sublinhado em “Anjos do Arrabalde” é o elenco. Vanessa Alves, em especial, como a psicótica manicure, abandonada pelo pai, violentada, perdida, traz uma dimensão extra ao filme. O olhar é distante, a fúria do corpo, diria João Gilberto Noll, torna-a uma possessa, caminhando pelas ruas estreitas do bairro. Em “Anjos do Arrabalde” a tragédia dos personagens não é contingenciada, ela é marca do filme, anda à solta. E nela reside a premissa de torná-los, indiscutivelmente, humanos.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

JEITOSA, UM ASSUNTO MUITO PARTICULAR

Caso curioso de filme em que a música-tema, apresentada nos créditos iniciais, dá todas as pistas sobre o desfecho da trama, “Jeitosa, Um Assunto Muito Particular” (1984) foi uma tentativa simpática do ator, produtor e dono de uma das melhores cantinas paulistanas, o romano Nello d'Rossi, em se aventurar na direção de um longa.

Proprietário, junto com a esposa, do Nello´s (Rua Antônio Bicudo 97, Pinheiros), histórico garoto-propaganda das camisas UsTop (“Bonita camisa, Fernandinho!), produtor do pioneiro longa “Cassiopéia” de 1996, Nello realizou em 84 esta comédia dramática, que gira em torno do cotidiano medíocre e limitado de Pixoxó (o falecido Hugo della Santa), estudante de engenharia da Usp, que mora em um quarto no Crusp com mais três estudantes paupérrimos.

Pixoxó inventou um golpe, quer colocá-lo em prática, mas para isso precisa de um cúmplice, ou melhor dizendo, uma cúmplice. Alicia namoradas e coloca nelas o apelido de “Jeitosa do Pixoxó”, mas apesar da deferência, nenhuma delas compactua com suas idéias até o fim. Quando conhece uma balconista de loja (Lúcia Veríssimo, na flor dos vinte e cinco anos), ela diz amém ao plano do jovem, na esperança vã de que isso aproxime ainda mais os dois.

Exemplo típico da massa de garotos da classe média-baixa paulistana, sem muitas perspectivas mas com acesso à universidade e bom nível cultural, eles optam assim pelo caminho menos doloroso de subirem na vida. O plano consiste em Pixoxó vender rifas para ricos empresários usufruírem de uma noite de sexo com a pobre Jeitosa. Assim, os dois concluem, conseguirão dinheiro sem passar pela ameaça de subemprego ou da baixa remuneração.

Como o cinema brasileiro desaprendeu a mostrar os nativos em sua intimidade cafajeste, o diálogo que precede a execução do plano soa delicioso nos caretas dias de hoje. Ao oportunismo chulé de Pixoxó, a linda Jeitosa responde com uma indignação vacilante, que cede ao primeiro argumento sólido do rapaz sobre os percalços futuros da vida.

Se não soubéssemos pela canção-tema que “Jeitosa/ ás no bolso escondido/ saiu vitoriosa”, começaria aqui um suspense sobre o desenrolar do plano. Mas se sabemos que Jeitosa vai dar sua reviravolta e sair bem do imbróglio, resta apenas a observação curiosa dos acontecimentos. Enquanto vendem as rifas do corpo de Jeitosa, o casal com um parafuso a menos aproveita o súbito fluxo de dinheiro para uma diversão noveau-riche, comprando roupas de marca e freqüentando ambientes chiques onde dificilmente entrariam antes.

Ao mesmo tempo que Pixoxó reafirma sua masculinidade com o poder financeiro, sabe que a entrega de Jeitosa para outro representará uma brutal desvalorização do seu papel de homem na dinâmica amorosa. Quando finalmente Jeitosa vai “premiar” o ganhador da rifa – um executivo, Doutor Casemiro (John Herbert), casado e morador dos Jardins – Pixoxó aproveita a chance e seduz com sucesso Rosa (Norma Blum), a esposa infeliz do oponente.

Na longa cena de Jeitosa e Doutor Casemiro no motel – onde o voyeurismo da câmera beira o humor involuntário – extraímos, além da plástica selvagem de Veríssimo, uma detalhista aula de arquitetura e decoração dos motéis brasileiros no início dos anos 80. Cama redonda, imensos portões de madeira, tiras de espelhos, samambaias espetaculares em profusão. Quando Jeitosa sai nua do banheiro, fica desvendado o mistério do porquê nossos tios e primos mais velhos costumavam chegar em casa com outra cara depois de sábado à noite.

A trama rende um pouco mais, o jovem casal picareta arranca todo o dinheiro que pode dos ricaços de meia-idade e, como era previsível, Jeitosa dá a volta por cima, larga Pixoxó e abraça uma vida comum e menos aventurosa. A cena final, de simbolismo ralo, pretende mostrar que dinheiro não traz felicidade. Mas quando se livra de Pixoxó é justamente a segurança financeira de um ex-namorado bem de vida que Jeitosa reencontra com fervor.

Baseado no conto “Jeitosa do Pixoxó” do escritor José Fonseca Fernandes, adaptado a seis mãos pelo próprio escritor, Luís Sergio Carrão e Nello d'Rossi, “Jeitosa” talvez permanecesse esquecido e esotérico como centenas de filmes da adorável produção paulistana dos anos 70 e 80, não fosse sua recente inclusão na grade do Canal Brasil. Se não é exemplo de melhor cinema é ao menos divertido, e como qualquer filme brasileiro, nos diz mais do que os enlatados globais do Corujão que são reprisados no mesmo horário.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

AMARELO MANGA


Cláudio Assis -- ao lado de Beto Brant, Karim Ainouz e alguns poucos outros em atividade, que se contam nos dedos -- não faz cinema para fracos. O aparente compromisso autoral que mantém -- e sua estudada postura gauche -- significam busca de uma verdade particular, que à semelhança da maioria dos autores é revelada em pílulas, construída em um mosaico de filmes, para um dia significarem o todo.

Analisados em pleno vôo os pedaços de idéias podem nos trair, provocar sensações e impressões errôneas de um quebra-cabeças a ser montado. Assim tão somente é possível falarmos sobre como o cinema brasileiro dialoga com os autores em curso; difícil afirmarmos qual exato papel vão ocupar na história do cinema brasileiro.

No caso de Cláudio Assis me parece claro que desde "Amarelo Manga" (2002) ele já atraía para si uma espécie de "consciência paralela", do Nordeste avesso aos estereótipos, da realidade nordestina (pernambucana) vista do âmago da coisa. Da mesma forma como é impossível aos tolos perceberem que existem mil Rios e mil São Paulos contidos atrás das simplificações, o que Cláudio Assis parecia estar dizendo era que também existem mil Pernambucos -- inclusive aqueles que, cruelmente, ele nos expõe sem disfarces.

O Recife de "Amarelo Manga" tem um sentido universal: as periferias de qualquer lugar do mundo estão cheias de pensões baratas, onde desgastam-se histórias sem esperança, conflitos se acumulam e as pessoas vivem e morrem anonimamente. Não é sobre fato; é obra atmosférica, que tenta emular um espírito -- no caso, a barbárie claustrofóbica de quem tem muito pouco a ganhar e quase nada a perder. Marcam passo na vida, o que não deixa de ser metáfora superior de um país que deixou de ser aquele do futuro, sem ter qualquer orgulho de passado e presente.

Dunga (Matheus Nachtergaele) é o homossexual faz-tudo do Texas Hotel, apaixonado por Wellington (Chico Diaz), funcionário de um matadouro e marido de Kika (Dira Paes). Lígia (Leona Cavalli) é a entediada dona de bar, que se confronta com Isaac (Jonas Bloch), misantropo necrófilo e morador do hotel-pensão onde Dunga trabalha. Montando essa ciranda a história avança preguiçosa, concentrando-se em exemplificar didaticamente o rumo -- e a desgraça -- de existências inúteis, paradigmas na opressão social e moral brasileira.

Sem conceder um milímetro em seus propósitos, o que às vezes parece "incômodo" no cinema de Cláudio Assis é o afirmar repetitivo da morbidez das personagens. O espectador que olhe superficialmente tanto "Amarelo Manga" quanto o recente "Baixio das Bestas" acaba por tomar o diretor como um obcecado.

Na verdade sua linguagem é igualmente literária e cinematográfica, evocando o estilo de realismo fantasmagórico de um Cornélio Pena ou mesmo de um Lúcio Cardoso. Que essa engenharia sofisticada seja traduzida para cinema de resistência, em um microcosmo miserável do século XXI, e com fotografia esplêndida -- de Walter Carvalho --, só demonstra liberdade criativa e multidisciplinar, no rastro daquilo que o Cinema Novo ensinou de melhor.

Efeito colateral previsível, as críticas e mitificações negativas parecem partir sempre dos subterrâneos mais simplórios, preconceituosos e provincianos de quem (ainda) consome cinema no Brasil. Embora esse tipo de ataque só engrandeça a longo prazo aqueles que realmente têm algo a dizer, o falso mal-estar que a estética agressiva e os gritos de Cláudio contra Hector Babenco provocaram, são símbolos da mediocridade bem-comportada, infértil e impotente que assola a cultura brasileira nos últimos anos.

Desafinando o coro dos patetas e sério candidato a representar um ideal fílmico para gerações futuras, Claudio Assis deve passar a caravana enquanto os cães ladram. Afinal, sabe o que quer e está só começando.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

Joelma, 23o. Andar


Filmes como “Love Letters of a Portuguese Nun” de Jess Franco, ou o mexicano “Alucarda”, celebram um estranho gênero cinematográfico: o nun-exploitation, a discutível tentativa de se ganhar dinheiro no cinema com filmes de temas supostamente “religiosos” (no caso dos nuns, a esquematização gira quase sempre em volta da vida secreta nos conventos, repleta de sexo, drogas e no lugar do rock and roll, religião). Outros filmes como “Stigmata”, do final dos anos 90, também trazem o filão da religião à tona, de forma explorativa e polêmica, convertendo em fé aquilo que deveria ser apenas entretenimento.

Mas só no Brasil (ah, o Brasil...!) se criou um gênero exploitation único, original, envolvendo temas religiosos cristãos: o espiritismo exploitation. Maior país espírita kardecista do mundo, o cinema brasileiro pode e deve encontrar no kardecismo temas e variantes sensacionais. É o caso de “Joelma, 23o,. andar” (1979), adaptado por Dulce Santucci a partir de um livro psicografado por Chico Xavier. Narra-se, do além, a desencarnação de vítimas na tragédia do Edifício Joelma, São Paulo, ocorrida em 1o. de fevereiro de 1974.

“Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência”. Contradição em termos, desprezem este aviso porque se fosse desta forma, qual a graça de se rodar e divulgar um filme sobre o evento ressaltando-se a presença de Chico? Vamos ao que de fato interessa.

O incêndio do Joelma entrou para a história – assim como o do Edifício Andraus e o do Andorinha. 184 morreram. As imagens da época não deixam mentir sobre o estardalhaço geral. Milhares de transeuntes acochambrados no viaduto da Praça da Bandeira, ou pela televisão, acompanhavam o drama como se numa mistura de pão e circo, aderindo ao voyeurismo tétrico que sempre se vê em ocasiões do gênero. Resumindo: público havia para “Joelma”, dinheiro foi levantado e o roteiro seguiu um cerimonial kardecista para contar o depoimento de Lucimar (Beth Goulart, aos 15 anos), universitária que trabalhava no vigésimo terceiro andar do prédio.

Os computadores jurássicos, de uns 500 quilos, ocupando paredes inteiras no setor de Lucimar, acentuam o acabamento cuidadoso da produção – até o fogo não é de brinquedo e recria com veracidade os momentos de tensão mais claustrofóbica. Jesse James Costa – assistente na produção – encarna um sobrevivente que escalou as paredes externas do Joelma, andar por andar. Sim, isto aconteceu na vida real, por mais absurdo que pareça.

Quanto a detalhes técnicos do conjunto, percebe-se no branco e preto uma escolha acertada para costurar o tom sério da religião com o estilo documentarista de antigos programas como “Globo Repórter” e “Amaral Neto”. Passo a passo, a história de Lucimar é desvendada.

Menina doce, que “pressentia a brevidade da vida” e auxiliava os próximos, esquecendo de si mesma. Não namorava, só estudava e trabalhava, boa filha, irmã, amiga. Do tipo que come empadinhas feitas pela mãe e vibra quando saem para fazer compras juntas.

Tem visões, sonhos, e em um deles sente labaredas enormes – maiores do que as que quase avançam sobre ela, ao ligar um simples fogão. Espiritualizada, quando passa em frente a livros de Chico Xavier inicia um transe no qual, assustadísimos, vemos o rosto congelado de Chico, produto da montagem pra lá de espectral.

A direção de Clery Cunha – atuou no adolescente “A Virgem” (1973), ao lado de Kadu Moliterno e Nadia Lippi – faz pouco para atenuar a verdade maior de “Joelma”: o culto à personalidade de Xavier, um profeta emblemático para dar sentido à catequese do filme. Ouvimos lições de esperança para aqueles que ficaram na Terra e choram os entes queridos. Provavelmente aumentou a romaria à cidade de Uberaba, onde o médium dava consultas, distribuía comida aos pobres e fazias preleções à sombra de uma árvore.

Inegável que os arquétipos convencionais esgotam a paciência de quem quiser ser um pouco mais cético. Estão no filme todos os clichês possíveis, semelhantes às dos folhetins-padrão. Vejamos: a menina pura, a mãe sofredora, o irmão boa-praça, o comerciante gordo, rico e prepotente que fuma charutos, a valorização do trabalho árduo acima do prazer e do dinheiro.

É preciso juntarmos, porém, dois fatores de “Joelma” para refletirmos sobre a sua originalidade. Primeiro: o filme é realmente primitivo ao falar sobre bondade como um atributo estanque. Lucimar é boa, mas tão boa que dói, e só alguns conseguiriam ser fora das câmeras ou dos livros da “Biblioteca das Moças”. Segundo fator – e este sim a ser lembrado –: o filme sai fortalecido de uma análise mais cuidadosa.

“Joelma, 23o. andar” capricha nos tons bombásticos, na falta de tato, vai direto ao caos. Devemos nos aproximar dele com lupas de aumento, deixando ainda mais claro o quanto a linguagem é pitoresca. Apesar de não ser entronizado nos cânones mais “respeitáveis”, faz vibrar a sensibilidade dos pesquisadores e cinéfilos de plantão, conseguindo resultados surpreendentes, que marcam um impacto que nem todo blockbuster – carregado das campanhas midiáticas – consegue atingir. É um autêntico produto da singularidade nacional.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

LONGA NOITE DE PRAZER


Fazer cinema autoral no Brasil é tarefa hercúlea, em parte pelas dificuldades materiais -- o país injusto, pobre, imediatista, etc. --, em parte pela má-vontade e obscurantismo gerados por essa carência óbvia.

São raros os autores brasileiros que conseguiram firmar-se por qualidades individuais -- não à sombra de movimentos, "escolas" ou subserviências. Walter Hugo Khouri foi um deles -- não há paralelo a Khouri, salvo os raríssimos discípulos e seguidores. Mas Khouri -- assim como Carlos Reichenbach, por exemplo -- fez concessões, aproximou-se de uma indústria comercial, a Boca do Lixo paulistana, e lá gerou bases sólidas para sua autoria.

Do outro lado da ponte-aérea, na complexa estrutura que movia o cinema carioca, alguns poucos nomes tentaram os mesmos passos: um deles foi Afrânio Vital, o negro que mais filmes dirigiu no país. Ao utilizar-se de certa base conquistada pelo cinema erótico -- ou como preferem dizer, a pornochanchada --, Afrânio foi autor singular, cavaleiro solitário de um ideário fílmico.

Homem de cultura vastíssima, cinéfilo fabuloso -- desses que vêem o filme uma vez e descrevem os olhares da atriz, vinte anos depois -- Afrânio misturou em três longa-metragens uma parte daquilo que constitui sua própria biografia e joie de vivre: a paixão pelo jazz, a admiração pessoal a dois nomes do cinema brasileiro, Khouri e Carlos Hugo Christensen, a condição de intelectual negro e ex-favelado em um mundo de brancos, supostamente sofisticados, e, principalmente, a análise psicanálitica, a tragédia -- esta apresentada como forma de superação, de engrandecimento moral.

Todo esse universo está organizado sinteticamente em "Longa Noite do Prazer" (1983), seu melhor e mais pessoal trabalho -- ainda que "Os Noivos", de quatro anos antes, seja mais coeso e bem acabado tecnicamente. Embalados por "Naima" -- a delicada peça que o saxofonista John Coltrane compôs em homenagem à primeira esposa, Juanita Naima Grubb -- os créditos iniciais (Um filme de Afrânio Vital) não deixam dúvidas da firmeza de propósitos.

Reflexão tensa, histérica -- ainda que melancólica -- de conflitos sociais e existenciais na amizade entre dois homens -- um negro, outro branco -- unidos pela marginalidade e separados por sua condição econômica, na verdade "Longa Noite do Prazer" é acima de tudo a história de amor platônico e admiração entre aquelas almas perdidas, insensatas. Enquanto Ricardo (Fernando Palitot) vive paixão edipiana pela mãe (Rosamaria Murtinho), no conforto de uma cobertura em Copacabana, Ivan (Haroldo de Oliveira) mira a vida do alto da favela no mesmo bairro. Ao se encontrarem, o sorriso entregue de Ivan traz o simbolismo da amizade como porto seguro, fuga e paz espiritual.

Em seguida, partem de carro pelo litoral do Rio, cheios de planos, idéias e dramas. Ricardo é aficcionado pelos poemas de Augusto dos Anjos, e saca "Eu" -- o livro do poeta -- de cinco em cinco minutos, para ler alguma estrofe. Marcam uma receptação de jóias roubadas para às nove horas da noite; armados, sentindo-se poderosos, vislumbram também um assalto à casa de duas mulheres, Jussara e Maria, que conhecem na praia da Barra.

Tórridas cenas de sexo na piscina da casa preencherão a necessidade do erotismo rotineiro, que movia as platéias naquele início da década de 80 aos cinemas. Em seguida, os assaltos, a trama das jóias roubadas e principalmente a cumplicidade e os conflitos, investigam criteriosamente a dinâmica caótica da dupla. Até um final simples, em que a morte de Ricardo é o fim e o recomeço moral de Ivan -- este, oposto à perversidade vocacional do amigo; outsider por desespero financeiro e necessidade de reconhecimento do outro.

O hiato que concentra-se na movimentação de Ivan e Ricardo rumo ao abismo, pode tirar a atenção do espectador mais disperso. No entanto, aqui se percebem influências curiosas manejadas por Afrânio: mesmo que as ambientações, o roteiro e a montagem sugiram bastante o estilo fílmico de Carlos Hugo Christensen, me parece claro que "Longa Noite do Prazer" é também obra de um apreciador do Cinema Marginal, da Belair.

Lá está o desapego calculado aos academicismos -- a cena da curra noturna, por exemplo -- e anarquia debochada, iconoclasta. Além de motivação camp, nos irônicos trechos de Pink Floyd sobrepostos -- sem qualquer sentido lógico -- na trilha-sonora.

Fácil de se perceber é que o diretor, filmando no Rio e em cenários tipicamente cariocas, extraiu de si uma curta obra bastante alinhada às proposições do cinema paulista -- o intelectual e comercial. Em uma época quando as distâncias eram maiores, circulando pelas duas cidades em cargos de assistência -- e exímio observador --, Afrânio conseguiu nesse intercâmbio um rumo novo. Não à toa, era elogiado por Rubem Biáfora em São Paulo e massacrado pelos colegas da Embrafilme, no Rio.

Quem cheirasse ameaças em Afrânio Vital, lamento dizer, estava coberto de razão. Tivesse feito mais filmes, levantaria questionamentos insuportáveis: o maior deles, a alteridade de um autor negro, de idéias articuladas e subversivas, muito além do oficialismo empurrado aos negros no cinema nacional. E paralela a isso, uma capacidade criativa de enrolar e desenrolar labirintos de acordo com suas obsessões íntimas e pessoais. Não muito diferente de Khouri -- amigo e mestre --, à mediocridade intelectual brasileira convém ignorar o mito Afrânio Vital, sob pena de, como esfinge, devorá-los.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

O CINEMA RODRIGUEANO

O Brasil, este país esquisito, que maltrata seus gênios e aplaude seus algozes, nunca compreendeu Nelson Rodrigues.

Dizer nunca inclui as últimas décadas em que Nelson vem desfrutando de uma unanimidade insuportável, revisto até em peças de teatro infantil e citado por patricinhas e mauricinhos no Orkut. Assim como Nietzsche, um polemista da sua estirpe, um escritor da sua qualidade, não merece tamanha cooptação. Gênios são feitos para incomodarem. "Domesticar" Nelson, trazê-lo para a sala de visitas, foi somente tratar sua obra pelas bordas superficiais, e, em última instância, uma nova forma de ignorá-lo.

Logo, existem dois Nelsons: o real, que viveu entre 1912 e 1980, condicionado pelas piores tragédias, sentado na máquina de escrever dissecando a miséria da alma humana com uma criatividade quase demente; e outro, inventado depois de morto, que virou quadro no Fantástico, ou vendido em meio a livros de auto-ajuda que certamente lhe causariam urticárias.

Nos anos 1960 e 70, quando a crítica não atingira o estágio tatibitati mercenário de hoje, muita gente já apontava que os subprodutos rodrigueanos -- os filmes principalmente -- padeciam desta incapacidade de emulá-lo com a mesma ferocidade do original. Claro, não sabiam a que ponto a diluição chegaria, pois gente como Braz Chediak, Arnaldo Jabor e Neville de Almeida compreendiam o autor perfeitamente bem. E se não conseguiam atingi-lo era porque trata-se de um osso duro de roer, uma armadilha para aqueles que, com a melhor das intenções, busquem uma transposição criativa do universo literário para o cinematográfico.

Tão filmado quanto entrevistado nos anos 70, a verdade é que Nelson abençoou quase todas as adaptações que recebeu em vida. Em uma conjunção de fatores, o cinema setentista foi a cara de suas obsessões. Assim, Jabor fez uma obra-prima com "Toda Nudez Será Castigada" (1973) e um grande espetáculo em "O Casamento" (1975). Conta a lenda que o jovem diretor, após o sucesso de "Toda Nudez", recebia do ídolo olhares de sincera admiração, que muito lhe preenchiam o ego. Podemos dizer, no entanto, que "O Casamento" nos cinemas nem chega aos pés do romance de 1966, banido em todo o território nacional pelo governo militar -- e uma das melhores coisas já escritas na língua portuguesa em todos os tempos.

Braz Chediak, vindo das adaptações de Plínio Marcos, se atracaria a Nelson percebendo ali um tesouro inesgotável, porém obtendo resultados desiguais. Em "Bonitinha Mas Ordinária" (1981), a famigerada, politicamente incorreta (e divertidíssima) cena do estupro da personagem de Lucélia Santos, eclipsa um dos melhores olhares às farsas rodrigueanas. "Perdoa-me por me traíres" (1983), alucinação de Nelson sobre as adúlteras da sua infância, também satisfaz. Já "Album de Família" (1981) peca por extrair de uma peça monocórdia tom igualmente desinteressante.

No mesmo período que Chediak, Neville de Almeida criava alegorias consistentes sobre um texto de "A Vida Como Ela É" -- "A Dama do Lotação" (1978) -- e uma das melhores peças rodrigueanas -- "Os Sete Gatinhos" (1980). Campeões absolutos de bilheteria, devorados pelo público no período áureo do cinema popular brasileiro -- e injustamente, hoje, revistos como pornochanchadas -- os filmes de Neville devem ter enchido Nelson de orgulho, pois são ferozes, satíricos e abjetos, diálogo alucinado entre dois artistas nobres.

Inferiores são "Beijo No Asfalto" -- de Bruno Barreto -- e "Engraçadinha" -- de Haroldo Marinho Barbosa -- ambos de 1981. Iniciou-se, então, um crescente ostracismo a Nelson, que acabaria ressucitado pela biografia de Ruy Castro, em 1992, e pelo consequente relançamento de sua obra pela Companhia das Letras.

Infelizmente as produções oriundas deste fenômeno, a partir dos anos 90 -- com exceção de "Vestido de Noiva" (2006) -- dirigido por seu filho, Joffre Rodrigues -- alcançaram estágios inacreditáveis de ruindade. São parte infeliz do referido massacre vulgarizante contemporâneo, a que gênios -- vivos ou mortos -- estão submetidos por suas próprias qualidades.

É bom lembrarmos que Nelson foi também razoavelmente adaptado para o cinema nos anos 60, mas a censura e o moralismo engessaram grande parte das tentativas. "Boca de Ouro" (1962), de Nelson Pereira dos Santos e a primeira versão de "Bonitinha Mas Ordinária"(1963), trouxeram Jece Valadão -- casado com a irmã de Nelson, Dulce -- em grande forma. "A Falecida" (1966) -- de Leon Hirszman -- apesar da interpretação de Fernanda Montenegro, padeceu do fato de que o diretor e seus cacoetes cinemanovistas se levaram mais a sério que o autor.

Recomendo a quem deseje "assistir" a Nelson na tela grande, que se prenda à trilogia de realizadores -- Jabor, Chediak, Neville -- pois deram sorte de lidarem com material rodrigueano na época mais propícia ao seu reconhecimento. Hoje, em um mundo onde estetas de sentido complexo -- Clarice Lispector, Adélia Prado -- renascem entre agendas púberes, o verdadeiro e essencial Nelson Rodrigues fica cada vez mais démodé. Tanto quanto o belo, possesso e imperfeito cinema que motivou um dia.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

MUITO PRAZER


“Muito Prazer”, de 1979, é o melhor filme de um gênio chamado David Neves. Advogado que nunca exerceu a profissão, apaixonou-se pela arte cinematográfica e foi diretor, produtor, assistente e roteirista. O amor de David Neves pelo cinema era tão grande que, conta a lenda, mesmo depois de se tornar diretor consagrado, continuava a aceitar cargos de assistência em filmes de amigos e colaboradores, apenas para fazer aquilo que gostava.

Foi também o mais carioca dos diretores nacionais, dedicando a maior parte da sua filmografia a traçar um painel, rico e generoso, dos hábitos e da gente da Zona Sul da cidade.

“Muito Prazer”, primeira parte de uma trilogia de filmes que inclui ainda “Fulaninha” e “Jardim de Alah”, mostra ao mundo uma espécie de paraíso antes da chegada da serpente. A cidade cordial, relaxada, irreverente, abriga o escritório de arquitetura de três sócios.

Ivan (Otávio Augusto), Aquino (Cecil Thirré) e Chico (Antônio Pedro) são homens de temperamentos diferentes, constantemente observados e postos em cheque por um trio de pivetes de rua, vendedores de amendoim.

A relação destes extremos sociais em princípio não é tensa, não amedronta -- pelo contrário, é amistosa e calorosa. Os arquitetos protegem os meninos e perdoam sua existência errática no bairro de classe média alta. Os meninos, por sua vez, olham os arquitetos apenas como as crianças olham os adultos: num misto de curiosidade, deboche e admiração.

Em outro plano da história temos a relação dos arquitetos com suas respectivas esposas. Ivan (Otávio Augusto) é alcoólatra; Aquino (Thiré) reprimido e metódico; Chico escorregadio e solteirão, o que desperta suspeitas sobre sua sexualidade. As esposas de Ivan e Aquino literalmente vagam em torno do trio, até que Nádia (Ítala Nandi), esposa de Ivan, dá o bote em Aquino e passa a ter um caso com o sócio do marido.

Nenhum outro cineasta brasileiro parece captar melhor o espírito de um microcosmo social, com seus valores e coloquialismos. Estamos de fato no Rio no final da década de 70, do princípio ao fim da trama. Todas as gírias se fazem presentes; todos os hábitos, conversas e símbolos. Neves, um homem sedutor e cheio de amigos, nos faz cúmplices de sua aventura, qualquer que seja ela.

“Muito Prazer” rende cenas poéticas e hilárias: Ivan, bêbado, vaga pelos botequins e encontra Nelson Cavaquinho. O pivete tenta vender amendoins para um executivo de Mercedes (Carlos Kroeber) e o executivo, assim que o farol abre, rouba os amendoins do pivete.

A vida dos três sócios vai degradando à medida que o alcoolismo de Ivan se agrava e que a mulher o trai. Por outro lado, os pivetes abandonam sua postura pacífica, de vendedores ambulantes, e assaltam Nádia. A confiança da relação cordial é quebrada. Arquitetos, esposas e pivetes não se entendem mais e apesar da promessa de civilidade, está esgotada a capacidade de diálogo, em qualquer combinação.

“Muito Prazer” foi perfeito em metaforizar o ocaso do Rio e o término das convivências pacíficas no espaço urbano. Ivan sabe que sua mulher o trai com Aquino; a amizade e a sociedade nunca mais serão as mesmas. Os homens agora sabem que não podem confiar nos meninos; eles assaltam e trabalham para um bandido mais velho.

Está encerrada a era da inocência para todos. A cidade-paraíso onde harmonizavam, em pouco tempo virou um grande inferno paranóico. “Muito Prazer” não é só uma obra-prima, é também o documento final de um estilo de vida.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

COM LICENÇA, EU VOU À LUTA


“Com Licença Eu vou à Luta” (1986), filme de Lui Farias, filho do diretor e produtor Roberto Farias, hoje em dia se encaixaria melhor na categoria de thriller do que de drama de costumes.

Em tempos bárbaros, a opressão moral, conjugada com um ambiente paupérrimo e violentíssimo (no caso o município de Nilópolis, na Baixada Fluminense), é a combinação ideal para a criação de uma história que termine invariavelmente em banho de sangue.

Na vida real, no início dos anos 80, o casal Eliane (Fernanda Torres) e Otávio (Carlos Augusto Strazzer) em vez de matarem, de se desesperarem, procuram pacificamente um juiz de família e pedem permissão para o namoro, já que a menina tinha apenas quinze anos e o rapaz trinta e três.

O filme é baseado na autobiografia best-seller “Com licença eu vou a luta – é ilegal ser menor?” de Eliane Maciel, a menina em questão, que massacrada por pais neuróticos, encontra no amor do adulto Otávio sua redenção particular. Loucos não são só aqueles que rasgam dinheiro, uma tia velha me dizia, e parodiando sua máxima podemos complementar: a loucura por vezes mora escondida nos lares mais comuns.

A casinha proletária de Eliane, onde o pai sargento (Reginaldo Farias) e a mãe dona de casa (Marieta Severo) cuidam do futuro da moça e do irmão mais novo, era digna de foto na Enciclopédia Brasileira Ilustrada. No entanto, por trás da fachada de pobreza honrada, há uma bomba prestes a explodir.

Dona Eunice, a mãe, vive para tramar o aniquilamento existencial da filha. Qualquer coisa que Eliane faça, ou diga, é tal como em uma novela de Kafka, sempre usada contra ela. A vontade da menina não importa, não vinga; o que vale é o narcisismo da mãe e seus mesquinhos desdobramentos. Para que Dona Eunice seja feliz, é preciso que Eliane escravize sua vontade a dela. Sem a atração-destruição da jovem Eliane, dizem os estudos da psicanálise sobre o assunto, personalidades como a de Eunice não são capazes de se sustentar de pé, sozinhas.

Resta a vítima proteger-se de sua algoz. Caminhando pelas ruas da conturbada Nilópolis, cidade-dormitório do Grande Rio, que ostenta desde os anos 70 uma das maiores taxas de homicídio do país, Eliane conhece Otávio, técnico da polícia, divorciado com dois filhos, que mora com a mãe.

Aparentemente Otávio é um loser, mas oculto em sua momentânea derrota pessoal está o coração de um homem generoso, prestes a se reinventar. Adepto de alimentação macrobiótica, leitor compulsivo, o trintão Otávio encontra na púbere Eliane o direito divino do recomeço.

Mas entre eles se coloca Dona Eunice. Jogando com todas as armas que possui (todas elas, invariavelmente, prejudiciais apenas à filha), Dona Eunice manipula o marido doente e a avó apaziguadora contra os planos do casal. Humilha Otávio, invade seu emprego, sua casa e dá o vaticínio “minha filha, este homem é horroroso, parece um macaco”. É interessante ver Strazzer (falecido de Aids em 1993), na vida real um ser humano sensível como o personagem, jogado na fogueira desta forma. Notem que, por instantes, seu olhar o trai diante das câmeras.

Ao casal nada mais restará do que um embasamento legal para seu amor. Procuram um juiz (Paulo Porto), que concede o direito de se verem. A mãe novamente expõe sua crueldade: “mas minha filha, ele vai enjoar de você muito rápido”. Em vez do desprezo de Otávio, Eliane colhe a traição da família, que a leva embora para outra cidade apenas para que fique longe do amante. O desfecho da trama não é para ser contado.

Produção da R. F. Farias, este é um daqueles produtos típicos que surgem “no lugar certo e na hora certa”. Ao processo de redemocratização do Brasil tudo podia somar-se, e a liberdade -- embora a censura ainda se manifestasse na proibição de filmes -- parecia ser a palavra de ordem (Je Vous Salue Marie de Godard foi o caso mais típico; dias depois do Ministro da Justiça declarar que “estava extinta a censura no Brasil”, como bom brasileiro, voltou atrás).

A discussão sobre a menor idade caiu como uma luva, enriquecendo a autora do livro e levando razoável público ao cinema, na dobradinha "literatura de consumo/cinema de qualidade", que no Brasil sempre produz resultados interessantes.

Corajosa, sincera, coerente em seu amor, Eliane é um arquétipo moral de personalidade, a ser melhor explorado nas artes. Aqueles que massacrados pelo ambiente familiar doentio, pela pobreza e pela falta de perspectivas, contrariam seus destinos, se forjam ainda mais fortes e vão à luta pelo que é mais grato ao ser humano: o direito de viver em paz consigo mesmo, acreditando apenas em seus mais íntimos valores.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

BARRA PESADA


O prazer de assistirmos a filmes policiais, ou mais luxuosamente definindo, "sobre realidades marginalizadas e criminalizadas", vem se tornando cada vez mais difícil no Brasil de hoje.

Sem o adendo de discussões sociológicas e políticas profundas, o que fica fácil perceber é que o tema, antes curioso e mesmo "exótico" para a maioria dos espectadores, tornou-se assunto cotidiano, corriqueiro. Os grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo, que até os anos 80 tinham uma ou duas esparsas páginas de crimes, hoje dedicam cadernos inteiros ao assunto -- e, principalmente, manchetes de primeira página.

Por conta dessas transformações houve inclusive uma simplificação de critério para a análise dos filmes policiais, principalmente os realizados nas décadas de 70 e 80: aqueles que pareciam "presságios" do futuro ganham cada vez melhor sobrevida do que as obras isoladas, logradas da crônica do passado. Entretanto, é injusto analisarmos o cinema -- e qualquer manifestação artística -- com o peso das idiossincrasias do nosso tempo.

Tudo isso porque "Barra Pesada" (1977), dirigido por Reginaldo Faria, não resistiria cinco minutos se defrontado com a realidade caótica de hoje. Queró (Stepan Necerssian), o pequeno marginal criado por Plínio Marcos no livro "Uma Reportagem Maldita", e transplantado sem sustos para o competente roteiro do próprio Reginaldo, merece ser chamado de amador até por uma criança. Pé de chinelo ao extremo, ladrão de galinhas, o pobre Queró não justifica na metade da primeira década do século XXI nem uma linha de obituário, que dirá um livro, um filme e adaptações para o teatro.

Mas vamos dar a ele uma chance -- aquela que a vida não deu. Filho de mãe suicida (Ítala Nandi), que ateou fogo às vestes, Queró, como ele mesmo se define, é "cria da zona". Para facilitar as coisas, Reginaldo levou a ação do roteiro de Santos para o Rio de Janeiro -- escolha que facilitou as filmagens para os produtores cariocas e que pouco prejudicou a adaptação; afinal Santos e Rio são ambas cidades portuárias, com uma área de prostituição atrelada ao entra e sai de navios.

Queró (chamado assim no filme, mas grafado "Querô" no romance original) nada faz na vida que não seja em prejuízo próprio. Deve na sinuca, é perseguido por dois informantes da polícia (Wilson Grey é um deles), rouba uma quadrilha de traficantes de drogas e encontra a redenção momentânea nos braços da jovem prostituta Ana (Kátia D' Ângelo), enquanto é traído por seu amigo (Cosme dos Santos). Se morrer, ninguém vai chorar seu corpo; se sobreviver, é por pouco tempo. A mensagem clara, talvez linear em excesso, serve de ilustração aos plots que vão se sucedendo no submundo realista e fotografado in loco nas ruas cariocas.

Naquele mesmo ano outro galã realizador de pornochanchadas, Carlo Mossy, também fazia sua estréia com brilhantismo nas searas da narrativa policial. Mas entre "Ódio" de Mossy e "Barra Pesada" de Reginaldo, as semelhanças não param na trajetória de seus diretores. Reparem a longa seqüência da sinuca que termina em briga, presente nos dois filmes, e também no cuidado em se desglamourizar o Rio de Janeiro, mostrando uma metrópole cinza, industrial, avessa de cartões-postais.

Na comparação, "Ódio" ganha -- é uma obra-prima, por várias razões -- enquanto "Barra Pesada" persiste apenas como entretenimento. O trio Stepan, Kátia D'Ângelo, Cosme dos Santos e coadjuvantes de luxo como Milton Morais, Wilson Grey e Lutero Luiz, fariam qualquer besteira parecer importante, mas diante deles se equipara o talento criador dos irmãos Faria -- na direção, roteiro e produção -- transformando o dificílimo Plínio Marcos em imagem saborosa. Ainda que, ao som de balas perdidas e notícias de chacinas, as ruas estejam cada vez mais perigosas para um tipinho ingênuo como o jovem Queró.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

AO SUL DO MEU CORPO


Foi só depois de assistir ao constrangedor "Duas Vezes com Helena", de 2001 -- baseado no mesmo conto de Paulo Emílio Salles Gomes -- que percebi o quanto "Ao Sul do Meu Corpo" (1981) é um belo filme. Empostado e superficial, o segundo falha em quase todos os acertos do primeiro, e parece sintomático -- em detrimento ao cinema atual -- duas adaptações de fonte semelhante obterem resultados tão diversos.

Como costume na obra do diretor Paulo César Saraceni, "Ao Sul do Meu Corpo" teve enormes dificuldades em ser liberado pela censura. Sabe-se que os censores se desagradaram do aspecto político do filme, deixando passar incólume sua inteligente subversão de valores convencionais, e a clara sugestão de homossexualismo entre os protagonistas: mestre e discípulo, levados às últimas consequências em triângulo amoroso.

Polidoro (Nuno Leal Maia) é aluno de Alberto (Paulo César Pereio); e, para Polidoro, o homem mais velho transmite sua filosofia epicurista com grande entusiasmo. Dividem mulheres, porres, impressões sobre Paris -- tendo como pano de fundo um Brasil provinciano e afrancesado, no final dos anos 30. Em período de formação, Polidoro vai para a Europa estudar. Alberto leva seu menino até o navio, com uma lista de recomendações e locais a serem visitados.

Na França, Polidoro descobre algo além do que buscava: as idéias fascistas, o nazismo, a divisão do tal "velho mundo", que ele gostaria de abraçar por inteiro. Uma emissora de rádio transmitindo em alemão e a risada macabra do rapaz gordo e convalescente na pensão onde mora são uma espécie de prenúncio do horror. Precisa voltar ao Brasil, à província, mas parodiando "Morro Velho", de Milton Nascimento, quando volta já é outro.

No entanto, impossível esquecer do mentor. Alberto, por sua vez, se corrói de saudades, mas deixa de ser um irremediável solteirão e contrai núpcias com a bela Helena (Ana Maria Nascimento e Silva). O que Polidoro não sabe é que o professor -- impossibilitado de ter filhos -- trama com a esposa para que ela seduza o aluno e engravide dele.

A sedução e o interlúdio do adultério são a melhor parte do filme. A presença de Alberto é massacrante, ainda que ele esteja muito longe dali. Polidoro tem em relação à mulher do próximo uma espécie de desejo apavorado -- aos poucos, sente-se paranóico com a situação. E Helena oferece seu corpo a Polidoro com um pragmatismo que discute todas as noções machistas de posse, ao mesmo tempo que reafirma as mesmas (afinal, ela é teleguiada pelo marido; seu ventre, em última instância, é depositário do prazer castrado de Alberto em engravidar do aluno).

Tudo isso acontece sem que Polidoro tenha sequer noção de fazer parte de um jogo reprodutor. Crê, impossivelmente crê, que a mulher do ídolo o ama. Quando é rechaçado por Helena parte cheio de culpas. Vai rever a dupla trinta anos mais tarde, hipnotizado e mortificado pela traição ao amigo. Só então descobre a verdade.

"Ao Sul do Meu Corpo" não é de compreensão muito fácil, inclusive por seu íntimo diálogo com a literatura. Escrito por um dos maiores críticos de cinema do país, o conto que deu origem ao filme necessitava da intervenção de um homem letrado como Saraceni. Acostumado a adaptar Lúcio Cardoso, o diretor trafega com segurança pelo universo repleto de cristianismo (Othon Bastos, como padre, tem o olhar de um sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa), e, ao mesmo tempo, pela construção psicanalítica de um triângulo revivido.

"Meu pudor não fica ofendido, ele se foi com Alberto", Helena sussurra e mostra os seios a Polidoro, como se encerrassem o segredo da vida. Ela sabe que seu gozo é auxiliar; o que importa é o gozo de Alberto. A pobre mulher aceita, passiva, a contenção do amor entre dois homens. E viverá, ainda passiva, por trinta anos, consolando o marido por esse amor que destrói sua possibilidade feminina de ser.

Paulo Emílio Salles Gomes morreu de enfarte em 1977, mesmo ano em que publicou o livro "Três mulheres de três PPPês", onde está a história de Helena. Sem dúvida teria gostado do filme. Ambos -- livro e filme -- trazem a marca da falta de medo, da afronta intelectual misturada com um enorme senso de perenidade e modéstia. Enfim, trazem o signo de dois Paulos: Emílio e Saraceni, homens da renascença, que fizeram a vida na crítica e no cinema por amor, já que podiam ter se dedicado a qualquer outra forma de arte com igual êxito.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

AMOR BANDIDO


“Amor Bandido” (1979) representa uma espécie de “filho especial” na filmografia de seu diretor, Bruno Barreto. Vindo na ocasião do megasucesso “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, aqui Bruno respira, faz um filme modesto, porém tão notável quanto o blockbuster de dois anos antes.

Na pequena série de policiais brasileiros, que iniciamos neste final de ano, “Amor Bandido” é do gênero que conquista o mais desatento dos espectadores. Inspirado no famoso caso da crônica policial carioca, o “Matador da Bandeira Dois” – um marginal que assassinava taxistas na zona sul, de madrugada – Barreto constrói, através do roteiro de Leopoldo Serran e José Louzeiro, uma crônica de costumes dissimulada.

Sandra (Cristina Aché) é moça de classe-média, filha do policial Galvão (Paulo Gracindo). Cai na prostituição e se envolve com o autor dos crimes, Toninho (Paulo Guarnieri), caçado pela cidade. De novo o espaço de ação é Copacabana, com seu luxo e lixo, ostentação e decadência.

Lá estão as famigeradas madrugadas nos edifícios de quitinetes e a promiscuidade nas boates, com o eterno oba-oba social-moral do bairro mostrado no varejo, através da tragédia-formiguinha de Sandra. Ela não tem mãe, divide um pequeno apartamento com um amigo travesti, até o dia em que este se suicida, saltando por cima das vigas de uma obra. Então Sandra conhece Toninho, o cafetão da amiga morta, e os dois iniciam relação doentia e simbiótica.

Toninho, como tantos, desembarcou de São Paulo sonhando com gringas e dólares. Na falta disso, junta dinheiro explorando homossexuais, compra uma arma e inicia carreira de homicida. Sandra, apavorada, vira cúmplice – enquanto o detetive Galvão, sem saber do envolvimento da filha, é o investigador do caso.

Vemos com detalhes a vida noturna do bas-fond carioca na virada da década de 70 para 80. As meninas saem da boate e vão para um restaurante barato jantar; Sandra e Toninho esperam o sol nascer em um banco do calçadão da praia, enquanto ele narra para ela sua vida de crimes. No edifício de Sandra, uma babel de classes sociais e profissionais habita, inclusive um taxista que não imagina ser vizinho dos matadores contra quem tanto vocifera.

A compreensão do relacionamento entre Sandra e Toninho é todo o segredo do filme. Ela encontra no garoto tresloucado sua proteção paterna. Ele encontra na menina, carente e promíscua, um simulacro de amor materno. E os dois, como quem precisa de outra metade para sustentar a possibilidade de ser, acabam perdidos um no outro.

Sandra sabe que vai entregar o namorado para a polícia, mas só o faz mediante tortura. O roteiro é tão perfeitamente construído que, a rigor, neste estágio do filme, estamos quase torcendo pelo casal. No inferninho onde bate ponto, com marcas das pancadas a que foi submetida, a triste Sandra dança com um cliente, enquanto sabe que lá fora, debaixo da chuva, seu pai é a morte aguardando Toninho. Se fosse cinema francês, o filme levantaria os créditos neste ponto. Mas na brutalidade brasileira vai além – e mostra em cores vivas até onde o crime não compensa.

Como detalhe curioso, temos um imbróglio acontecido na época, envolvendo Barreto – que comprou a música “Amada Amante”, de Roberto Carlos, esperando ser este o título do filme – e o diretor da Boca do Lixo, Cláudio Cunha, que foi mais rápido e lançou o seu “Amada Amante” durante as filmagens de Barreto. Isto explica a estranheza, meio fora do contexto, de Sandra ser obcecada pela música ao longo da história.

É longamente discutível se o diretor é bom cineasta ou não – mas em “Amor Bandido”, e nas produções dos anos 80, ao menos esforçava-se para não dar sono. Se chegando em “Bossanova”, a pretexto de celebrar o bairro que ama, fez um filme de plástico, resta o lembrete de que aqui já havia realizado uma espontânea homenagem, enfiando o pé na jaca e dando ao mundo a visão pessoal – e autoral – de um lugar que prova conhecer tão bem, mas tão bem, que soa exemplarmente perfeito, no ofício nobre de artesão naturalista.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

O CASAMENTO


Falar de Nelson Rodrigues no alvorecer de 2010 me parece difícil, muito por conta da quantidade de estudos, recriações, adaptações e diluições que castigam a obra de Nelson nos últimos anos. A esse fenômeno culpe-se benignamente Ruy Castro, que lançou em 1992 uma biografia definitiva, “O Anjo Pornográfico”, e tirou o autor do limbo em que a intelligentsia brasileira, sempre zelosa do seu index, havia colocado o autor por conta de suas posições políticas conservadoras.

Nelson, no entanto, tem a cretina pecha de “conservador” apenas para aqueles que, como ele mesmo definiria, pastam no terreno baldio e bebem água em cuia de queijo Palmira. Sua filosofia libertária era extrema e extensa, por isso talvez desconfiasse tanto de Freud e Marx, os cânones adorados por seus contemporâneos do século XX. Daí para estes contemporâneos acusarem Nelson de ser aquilo que não era – um anti-intelectual reacionário – foi um pulo.

Por outro lado, se não tinha a simpatia da parcela dita avançada da intelectualidade brasileira, também era odiado pelos legítimos conservadores, que viam na sua escrita uma ameaça aos bons costumes. Em certo momento da vida, Nelson foi portanto um homem artisticamente isolado e para onde quer que olhasse, não o viam com bons olhos.

Esse estado de coisas encontra um ápice em 1966, ano em que, por incrível encomenda do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, escreveu “O Casamento”, um dos melhores romances da literatura nacional de todos os tempos.

“O Casamento” (1975), o filme, dirigido por seu amigo Arnaldo Jabor, é muito bom, mas não consegue ser um décimo do que é o livro, a obra-prima. Talvez porque bons romances não dêem bons filmes, Nelson no cinema funcionou bem apenas na adaptação de suas peças. Logo, para falarmos do filme de Jabor, talvez seja melhor voltarmos nossas atenções para a força da obra literária e o resultado da transposição de uma linguagem para outra.

“O Casamento” versa basicamente sobre a fúria do corpo sufocada pela hipocrisia social e moral. Sabino Uchôa Maranhão (Paulo Porto) é um homem bem-sucedido, que vai casar a filha Glorinha (Adriana Prieto), a quem devota paixão incestuosa. O noivo de Glorinha, por sua vez, é um homossexual enrustido, que beija Zé Honório (André Valli), e é pego em flagrante pelo Doutor Camarinha (Fregolente), ginecologista de Glorinha e pai de Antônio Carlos (Érico Vidal), playboy tresloucado com quem Glorinha perdeu a virgindade. Contando assim, essa ciranda de personagens interligados parece fácil, mas Nelson oferece ao leitor o inferno em vida através do que anda pela cabeça das suas criaturas.

No filme há uma nítida diluição destes pensamentos escusos rodrigueanos. Antes podemos dizer que o universo subjetivo apresentado no livro é tão forte que acaba por ser inadequado ao audiovisual, gerando uma obra de meia-força. Jabor entende Nelson, isso parece visível, mas o romancista Nelson é tão grande que o cineasta Jabor apenas o toca na superfície, sem conseguir aprofundá-lo.

A melhor parte do livro – e do filme – no entanto são coincidentes. Trata-se do dia em que Glorinha perdeu a virgindade. Antônio Carlos guia o seu carro pela praia de Copacabana, passeando com Glorinha e uma amiga dela, as duas hipnotizadas por sua cafajestagem.

Depois de várias ameaças de suicídio teatralizadas, Antônio Carlos arrasta as garotas até a casa de Zé Honório, que pretende ter relações sexuais com outro homem na frente do pai, que o surrava por ser gay. André Valli dá aqui seu show particular no papel do homossexual amargo, com sede de vingança. Mas o que no livro soava apavorante, doentio, no filme transparece apenas como encenação vazia, histérica.

E detalhe interessante: na obra de Nelson, Glorinha e a amiga mantêm relações sexuais uma com a outra por ordem de Antônio Carlos, antes que ele deflore Glorinha. No filme essa parte fundamental da trama é descartada – talvez por conta da censura de 1975. Já a parte onde Sabino avança sobre sua secretária Noêmia (Camila Amado), encontra na dupla de atores uma tensão fantástica, se igualando ao que no livro era respiração suspensa, delírio sadomasoquista.

De todos os personagens transpostos, o mais fraco talvez seja Antônio Carlos, fascinante e dionisíaco na obra literária e vacilante e estereotipado no filme. Ao final, quando Sabino tenta agarrar Glorinha, Noêmia é morta pelo namorado (Nelson Dantas) e, num movimento de espelhamento de culpa, Sabino se entrega como responsável pela morte de Noêmia, temos a nítida sensação de que assistimos a um grande espetáculo. Mas a plenitude e a virtude da história que acabou de ser contada residem ainda no texto de Nelson, a ser lido e relido.

Não à toa sua obra encantou e encanta gente tão díspare quanto o cineasta José Antônio Garcia; o ex-advogado, então cineasta e hoje cronista Arnaldo Jabor (que na dúvida copia na forma o estilo de Nelson para agradar seus leitores); e toda uma nova geração de atores e atrizes teatrais, para quem Nelson é a gigantesca referência estudada em teatro brasileiro. Merecidamente, o antigo reacionário maldito se tornou quase uma unanimidade – o que talvez o desagradasse um bocado.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).