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quinta-feira, 24 de junho de 2010

AMARELO MANGA


Cláudio Assis -- ao lado de Beto Brant, Karim Ainouz e alguns poucos outros em atividade, que se contam nos dedos -- não faz cinema para fracos. O aparente compromisso autoral que mantém -- e sua estudada postura gauche -- significam busca de uma verdade particular, que à semelhança da maioria dos autores é revelada em pílulas, construída em um mosaico de filmes, para um dia significarem o todo.

Analisados em pleno vôo os pedaços de idéias podem nos trair, provocar sensações e impressões errôneas de um quebra-cabeças a ser montado. Assim tão somente é possível falarmos sobre como o cinema brasileiro dialoga com os autores em curso; difícil afirmarmos qual exato papel vão ocupar na história do cinema brasileiro.

No caso de Cláudio Assis me parece claro que desde "Amarelo Manga" (2002) ele já atraía para si uma espécie de "consciência paralela", do Nordeste avesso aos estereótipos, da realidade nordestina (pernambucana) vista do âmago da coisa. Da mesma forma como é impossível aos tolos perceberem que existem mil Rios e mil São Paulos contidos atrás das simplificações, o que Cláudio Assis parecia estar dizendo era que também existem mil Pernambucos -- inclusive aqueles que, cruelmente, ele nos expõe sem disfarces.

O Recife de "Amarelo Manga" tem um sentido universal: as periferias de qualquer lugar do mundo estão cheias de pensões baratas, onde desgastam-se histórias sem esperança, conflitos se acumulam e as pessoas vivem e morrem anonimamente. Não é sobre fato; é obra atmosférica, que tenta emular um espírito -- no caso, a barbárie claustrofóbica de quem tem muito pouco a ganhar e quase nada a perder. Marcam passo na vida, o que não deixa de ser metáfora superior de um país que deixou de ser aquele do futuro, sem ter qualquer orgulho de passado e presente.

Dunga (Matheus Nachtergaele) é o homossexual faz-tudo do Texas Hotel, apaixonado por Wellington (Chico Diaz), funcionário de um matadouro e marido de Kika (Dira Paes). Lígia (Leona Cavalli) é a entediada dona de bar, que se confronta com Isaac (Jonas Bloch), misantropo necrófilo e morador do hotel-pensão onde Dunga trabalha. Montando essa ciranda a história avança preguiçosa, concentrando-se em exemplificar didaticamente o rumo -- e a desgraça -- de existências inúteis, paradigmas na opressão social e moral brasileira.

Sem conceder um milímetro em seus propósitos, o que às vezes parece "incômodo" no cinema de Cláudio Assis é o afirmar repetitivo da morbidez das personagens. O espectador que olhe superficialmente tanto "Amarelo Manga" quanto o recente "Baixio das Bestas" acaba por tomar o diretor como um obcecado.

Na verdade sua linguagem é igualmente literária e cinematográfica, evocando o estilo de realismo fantasmagórico de um Cornélio Pena ou mesmo de um Lúcio Cardoso. Que essa engenharia sofisticada seja traduzida para cinema de resistência, em um microcosmo miserável do século XXI, e com fotografia esplêndida -- de Walter Carvalho --, só demonstra liberdade criativa e multidisciplinar, no rastro daquilo que o Cinema Novo ensinou de melhor.

Efeito colateral previsível, as críticas e mitificações negativas parecem partir sempre dos subterrâneos mais simplórios, preconceituosos e provincianos de quem (ainda) consome cinema no Brasil. Embora esse tipo de ataque só engrandeça a longo prazo aqueles que realmente têm algo a dizer, o falso mal-estar que a estética agressiva e os gritos de Cláudio contra Hector Babenco provocaram, são símbolos da mediocridade bem-comportada, infértil e impotente que assola a cultura brasileira nos últimos anos.

Desafinando o coro dos patetas e sério candidato a representar um ideal fílmico para gerações futuras, Claudio Assis deve passar a caravana enquanto os cães ladram. Afinal, sabe o que quer e está só começando.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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