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quinta-feira, 24 de junho de 2010

BAR ESPERANÇA


Um dos melhores botequins que o Rio de Janeiro já teve funcionou somente por algumas semanas, e em endereço improvável: o cinzento bairro de São Cristóvão, Rua Sá Freire, 94 -- mais precisamente os estúdios da Magnus Filmes, de Jece Valadão -- onde Hugo Carvana filmava o seu delicioso "Bar Esperança" (1983).

Como em todos os filmes de Carvana, a história simples -- o fechamento de um bar, espaço sentimental de amigos -- melhora na proporção em que compreendemos as intenções do autor: se "Vai Trabalhar Vagabundo" era uma ode ao homem brasileiro urbano, "Bar Esperança" é sobre um estado de espírito -- carioca e cosmopolita -- que àquela altura dos acontecimentos já se mostrava inviável.

No bar trafegam o escritor Zeca (Carvana) e a atriz Ana Moreno (Marília Pêra), sufocados por litros de chopp e toneladas de amigos. Zeca é o típico intelectual da zona sul, equilibrando-se entre a necessidade de ganhar dinheiro e a vontade de rumos mais interessantes. Sente-se mortificado pelo trabalho na tv, refém da arrogância do patrão -- o produtor Baby (Oswaldo Loureiro) -- e da hipocrisia dos próprios colegas.

Zeca e Ana moram em um apartamento enfeitado por um pôster de John Lennon, duas crianças e uma máquina de escrever. Utilizam pouco a casa, extensão do bar. Ao levar chá de cadeira na tv, Zeca dá um piti e joga tudo para o alto. Ana, fazendo sucesso na mesma emissora como a vilã Berenice, se desespera e larga o marido. No bar, discutem e discutem a relação -- e as decisões ganham ares de imersão existencialista.

A loucura dos gestos e falas dos personagens é explicável pelo temperamento histérico e displicente da chamada "esquerda festiva", termo cunhado pelo jornalista Carlos Leonam para designar um mito ipanemense. Revolucionários adoráveis, esculhambavam com o meio, a fauna e a flora. Cariocas militantes, aceitariam o Sig -- aquele ratinho verde do Pasquim -- na mesa de braços abertos, desde que ele não enchesse a paciência e bebesse um bocado.

Os filhos de Ana e Zeca, conhecendo a verve dos pais, fazem até estoque de comida para tempos difíceis. Wilson Grey, como sempre o único lúcido, sugere que "Copacabana e Leme vão acabar tragados pela merda". Um ex-colega de faculdade de Ana, Pessanha -- apelidado Camelo -- denuncia que "enquanto ela fazia política, ele ganhava dinheiro". Ana baixa os olhos, mesmo porque sabe que sem a tv o marido terá que voltar a produzir romances -- sob o mimoso pseudônimo de "Shirley Almada".

Outro que se desfaz nos mesmos dilemas é Tuca (Luis Fernando Guimarães), ator que consegue oportunidade em uma pornochanchada, "A Viúva do Sadomasoquista", contracenando -- e brochando -- com a estrela do gênero, Áurea Celeste. E, de fracasso em fracasso, resta beber, cair duro ou até sequestrar cachorro. Zeca e o amigo Ivan (Nelson Dantas) depois de uma noite e tanta acordam -- ironizando o delirium tremens -- com um belo pastor alemão na cama, roubado de Nina (Louise Cardoso).

No decorrer da separação, Ana diz a Zeca que "crise a gente tem é pra melhorar, se não é desculpa pra fraqueza". O marido parece realmente fraco, confuso, e na hora de pegar a mudança no apartamento toca na vitrola o lp "Cores Nomes" de Caetano Veloso, safra 82. Em seguida junta-se a Nina para fazer teatro em tribos indígenas, enquanto Ana conhece Arnaldo (Daniel Filho), sujeito mais enrolado (e fraco, confuso) que o marido.

História paralela, a de Cabelinho (Paulo Cesar Pereio) e a mulher, Cotinha (Silvia Bandeira), termina em striptease da dedicada esposa, durante louca vernissage do artista plástico Walfrido Salvador (Anselmo Vasconcellos) no banheiro do bar. Humilhado, etilicamente dependente do garçom Prepúcio (Sandro Solviatti), Cabelinho muda do vinho pra água e passa a tratar a mãe de seus filhos como uma deusa, o que de fato naquela época Silvia Bandeira não se furtava a ser.

Segunda extensão de lar carioca, -- além do botequim -- a praia mostra-se tímida, sob a trilha-sonora da famigerada Rádio Cidade, então quase ruído incidental dos acontecimentos locais. Outra figuração datadíssima é do veículo-merchandising em formato de tênis, que circulou pela orla durante alguns verões.

O desaparecimento do Esperança, para dar vez a um shopping center, serve de paralelo lúdico ao que o Rio perdeu. E quando celebram a perda, os frequentadores não escapam à triste sina da metrópole que assistiu passiva à retirada do status de capital, à demolição do Palácio Monroe, à fusão com o estado do Rio -- e ao sacrifício de quase tudo que um dia foi orgulho, sem receber qualquer compensação em troca.

Discutindo com Passarinho (Antônio Pedro), Zeca faz auto-crítica: viravam todos caricaturas de si mesmos. Mais uma vez o sentido do diálogo é amplo: dispersos em seu estilo de vida, orfãos de um bem-estar nostálgico, os frequentadores do Bar Esperança são a cidade e seus habitantes acuados pelo progresso decadente, insatisfeitos com uma transformação artificiosa.

Misto de vários bares reais: o Lagoa, o Lamas, o Bar Luiz, a Confeitaria Colombo, "Bar Esperança" acumula emoções vivas, psicanálise dionisíaca, etnocentrismo de primeira. Não à toa, o roteiro passou por diversos tratamentos (Carvana, Denise Bandeira, Martha Alencar, Armando Costa, Euclydes Marinho), montando um comovente retrato da classe-média nos anos 80. Justo quando o país -- e sua urbanidade-síntese -- descobriam-se em exasperante ressaca.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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