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quinta-feira, 24 de junho de 2010

MULHER OBJETO


Sílvio de Abreu é mais conhecido como autor de novelas da Tv Globo, ambientadas em São Paulo, com doses cavalares de humor inofensivo. Escreveu “Guerra dos Sexos”, estrondoso sucesso de 1983, em que Paulo Autran e Fernanda Montenegro trocavam tapas e beijos em meio à revoada de pães, doces, mingaus e utensílios comestíveis em geral. Dois anos antes, porém, Sílvio caminhava pelas calçadas da Rua do Triunfo e dirigiu “Mulher objeto”, produção de Aníbal Massaini Neto, estrelada por Helena Ramos – musa da Boca do Lixo e dos mais variados esportes eqüestres --, Nuno Leal Maia, Kate Lyra, Hélio Souto.

O título não se aplica muito bem ao roteiro de Jayme Camargo, que segue razoavelmente inteligente até o final, quando então o moralismo debilóide e machista conspira contra as andanças da heroína e une-a ao marido depois do bom e velho sexo selvagem. Regina (Helena Ramos) é uma histérica daquelas de dar inveja às analisandas de Charcot e Freud. Toda vez em que aproxima-se do que os franceses, lugubremente, apelidaram de “pequena morte”, Regina surta, vê pombos voando, grita, não atinge o prazer. Detalhe mais importante: há meses não transa com o marido, e acumula fantasias eróticas, não concretizadas, com todos os homens da face da terra menos ele. Nuno Leal Maia, coitado, especializando-se no papel de esposo insatisfeito (repete a dose de “A Dama do Lotação”, 1978) argumenta em vão. Pelo menos decide pagar a Regina as consultas a uma psicanalista (Karin Rodrigues).

“Mulher objeto” marca a fase do “pornô não-explícito” – contradição em termos – da Boca, expondo aqui e ali certas passagens curiosas. A protagonista expõe-se ao marido, conta absolutamente tudo, e ao invés de ser estapeada, vai ao analista. Nisto, o roteiro de Jayme Camargo, creio eu, desenvolve interessantemente o argumento de Alberto Salvá. Ressalve-se, no entanto, que o clássico “Mulher, Mulher” (1977), de Jean Garrett, também tratava de uma mulher frígida (a mesma Helena Ramos), esposa de um analista, que, enviuvando, procura chegar ao prazer das maneiras mais inesperadas.

Nus frontais masculinos, detalhe curioso, são vistos algumas vezes em “Mulher objeto”, confrontando o bom e velho tabu brasileiro. Aparecem desde o garoto de cerca de 13 anos – a primeira quase-transa consensual de Regina ainda criança, no orfanato religioso – ao rapagão que conheceu numa boate e larga na cama do motel, momentos depois de perceber que sentia-se segura o suficente para começar novos relacionamentos.

Hitchcock faz ponta em “Mulher objeto”. Melhor dizendo, a música de Bernard Herrmann, emblema de “Psicose”, quando Regina começa a decifrar os traumas de infância que a paralizaram sexualmente. Como não consta dos créditos do filme, é uma homenagem dos autores, muito bem-vinda. Homenagens não faltam, pois a história de Regina lembra um pouco a de Helena Ramos, também ela interna de um colégio de freiras, dos oito aos dez anos de idade.

Assistir ao filme transmite uma sensação de déjà vu. Certas vezes “Mulher objeto” parece um episódio da antiga série “Casal Vinte”, pela decoração setentista carregadíssima, cheia de samambaias, óculos escuros imensos, unhas vermelhas, o “chic do chic”. O cuidado proposital na direção de arte visava justamente a fazer com que o filme se tornasse mais palatável, uma espécie de Emanuelle dos trópicos.

Como boa Emanuelle, Regina tem o momento da escapada lésbica. Contracenando com Maria Lúcia Dahl (Maruska), as atuações são primorosas, em especial o monólogo de Maruska, no frêmito de convencer Regina, com um papo ardilosíssimo. Transcrevi apenas o começo:

– Eu adoro as mulheres, as mulheres sabem das coisas... Eu sempre me dei muito bem com elas... Esse mesmo número com homens e mulheres não seria tão suave, tão plástico, tão excitante, você não acha?

Já de volta para casa, no carro e de piteira na mão, Dahl lança a frase antológica

– Eu gosto muito de uma relação entre mulheres, sabe?

Poucas vezes ouvi tanto a palavra “mulher” e sua variante no plural quanto nos minutos que envolvem a cantada de Dahl, o desenlace entre as duas – imaginado por Regina – e a despedida no carro. “Mulher objeto” tem dessas coisas. Entra para a galeria de filmes brasileiros que ousavam nas telas, levavam hordas de espectadores ao cinema e povoavam os sonhos de senhores e senhoras, respeitáveis ou não. Helena Ramos com olhares transtornados, típica travada sexual, faz da personagem um show à parte. Mal sabia ela, consagrava-se eternamente como a Norma Desmond do Bar Soberano e adjacências.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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