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quinta-feira, 24 de junho de 2010

BONITINHA MAS ORDINÁRIA


Se um filme não é um bombom de cereja, como diria Nelson Rodrigues, “Bonitinha Mas Ordinária” possui taxa baixíssima de glicose. Geralmente associada à pornografia vazia – sem pelo menos o benefício da dúvida –, a película de Braz Chediak domina a peça teatral de Nelson com a técnica de quem desde cedo era familiarizado com a obra do dramaturgo.

Amante da literatura, Chediak aterrissou aos poucos na indústria cinematográfica. Aproveitava a vida e a arte dos anos 60, sem qualquer pretensão de tornar-se diretor. Quando em 1963 é sondado por Joffre Rodrigues – filho de Nelson e produtor da primeira versão de “Bonitinha Mas Ordinária” –, é na condição de ator que recusa o convite para integrar o elenco e viaja para a Itália, aproveitando uma bolsa de estudos.

Na volta ao Brasil dirigiria, anos depois, “Navalha na Carne” (1969), da peça de Plínio Marcos. A dimensão expressionista de “Navalha” precisa ser urgentemente estudada por aqueles que ainda confundem altos recursos financeiros como pré-requisito para vôos artísticos. Dispondo de apenas um apartamento, atores em ponto de bala e um diretor que sabia perfeitamente aonde queria chegar, temos como resultado algo que supera em muito a mediocridade que por vezes lhe é imputada.

O mesmo pode ser dito sobre seu trabalho em “Bonitinha Mas Ordinária” (1981), recebido com salva de palmas por Nelson. O escritor compreendeu os alvos de Chediak. A meta era fazer com que o texto soasse palatável para a massa espectadora, além de extrair do elenco e dos referenciais do autor uma plástica tremendamente sincera.

Chediak não distorce, não ilude. Ao optar de caso pensado por uma narrativa linear, nem por isto desmerece o texto. Ao contrário: torna-o pleno.

Se prestarmos atenção em profissionais acostumados a esforços de peso – como Milton Moraes (Peixoto) e Carlos Kroeber (Dr. Werneck) –, bastam alguns segundos para entendermos que apesar de os personagens usarem uma fachada histriônica, cheia de piadinhas, o que eles revelam são doenças horríveis, que esmurram a sensibilidade do observador.

Lucélia Santos – ex-esposa de John Neschling, atual maestro da Osesp, autor da trilha sonora do filme – sobressai na amostragem dos planos de consciência e inconsciência de Maria Cecília, a protagonista infernal.

Seja nos estupros grupais – sim, nos tão comentados estupros grupais –, quanto nas conversas com o futuro noivo, Edgard (José Wilker), e em absolutamente todos os takes em que aparece, percebemos na personagem de Lucélia as rubricas do escritor e do diretor. Há uma sintonia indisfarçável entre os dois. Nelson, aliás, adorou a encenação dos estupros. Com as mãos presas, seguras pelos homens, Maria Cecília era crucificada como o Cristo espúrio que pretendia por ocasião da peça. Por sua vez, a imagem vista nas telas foi concebida por Chediak, a partir de um quadro de Salvador Dali.

Outros momentos impactam pela selvageria sexual. O “banquete” em que três meninas, irmãs da prostituta Ritinha (Vera Fischer) – namorada de Edgard –, são violadas sob o olhar de convidados em uma festa é um deles. Num rasgo de hiper-violência, Chediak deixa a cena durar por mais minutos do que o suportável.

Abandonando esta abordagem, em um compasso um pouco mais cínico, vemos com espanto o mendigo que masturba-se, a conversa de Edgard e Ritinha numa cova de cemitério, o abuso do chefe (Rubem Corrêa) pela filha (Ritinha) de uma funcionária (Miriam Pires, em grande forma, como uma catatônica desmemoriada).

Como todos repetem a toda hora, numa insistência surreal, “o mineiro só é solidário no câncer”. A orientação da peça e do filme é quase completamente a do desprezo pela hipocrisia humana. O “câncer” existe, é uma realidade indefectível, mas a possibilidade de curá-lo rareia à medida em que pessoas como Werneck, Peixoto e Maria Cecília mostram a vontade de se denegrirem e exilarem-se na podridão.

Sobra para o casal de apaixonados (Ritinha e Edgard) uma esperança discreta, caminhando pela praia juntos, iluminados pelo nascer do sol. Aqui Chediak voltaria ao melodrama e dá a ele próprio e a todos nós, o direito de sermos ingênuos pelo menos por um tempo.

No fim “Bonitinha Mas Ordinária” é exemplar do fenômeno das produções envolvendo a obra teatral do autor, que se não chegavam a soar autenticamente rodrigueanas, dialogavam com o universo de Nelson e formavam um terceiro híbrido, onde a mão criteriosa do realizador cinematográfico também fica evidente.

Atento aos filhotes interessantes que seu imaginário produziu, Nelson valorizou as criações de Chediak, Jabor e outros com êxtase juvenil – o que, com certeza, torna ainda mais duvidoso o idiota da objetividade que torça o nariz para estes filmes, rindo deles como se fossem entretenimento pitoresco.

Não esqueçamos que na "Resenha Facit", programa de debates esportivos do qual participava, quando tinha opinião sua confrontada com a evidência de um videotape, Nelson vaticinava: “- Estou certo e o videotape errado! O videotape é burro!”. Escutemos Nelson, pois sua razão era batata, batatíssima.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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