Powered By Blogger

quinta-feira, 24 de junho de 2010

A CULPA


Se cochilasse durante os créditos e alguém me dissesse que "A Culpa" (1971) foi dirigido por Domingos de Oliveira, custaria a acreditar. Misto de metáfora política com tragédia clássica, de psicanálise freudiana com Octavio de Faria ou mesmo Nelson Rodrigues, "A Culpa" nada tem a ver com o universo que Domingos construiu em seus filmes -- de "Todas as Mulheres do Mundo" (1967) ao ótimo "Carreiras", quarenta anos depois, em 2007.

Inicialmente traça-se um paralelo sutil entre o pai (a interdição/lei freudiana), e a organização social, o Estado. O pai real, construtor de renome, emula o pai-Estado: traz o progresso levantando prédios, mas também impondo controle aos filhos (indivíduos), reféns do "mais forte". A idéia, explícita no voice off inicial, com narração do próprio Domingos, terminará no assassinato do pai real, seu corpo arrastado para uma cova rasa, em um palacete onde moram e que chamam de "reduto".

Os filhos são Heitor (Paulo José) e Matilde (Dina Sfat). Matilde tem um noivo, o arquiteto Henrique (Nelson Xavier), e o trio vira cúmplice no assassinato. Matam para receber a herança, estipulada em milhões de dólares; e matam também para que a lei "desapareça" -- sintam-se livres, quem sabe felizes. Mas a opção de enterrar o corpo por perto deixa claro que esta liberdade nunca será assegurada completamente: a lei continuará rondando a mente atormentada de cada um.

Formam um triângulo amoroso platônico, Matilde e Heitor confiando em Henrique como ao terceiro irmão. Heitor é cineasta frustrado, fraco, sem voz firme, embora queira comandar os pensamentos e o humor de Matilde -- esta, beirando a psicose. Porém, o primeiro candidato à danação será Henrique, farejador de si mesmo, réu da própria sentença até o suicídio.

Acompanhadas por Heitor com certo cinismo, a expiação e morte de Henrique servem para que os dois irmãos concretizem um fantasmagórico incesto. E aliviem a culpa, renovada sobre o terceiro, elemento estranho, "vindo de Minas e sem família", conforme depoimento.

Mas a culpa -- em outras palavras, o temor venal à interdição -- manipula o casal, indeciso entre um triunfalismo maníaco e um torpor paranóico. Voltando dos trâmites da herança, Heitor avisa a Matilde que o dinheiro já está no banco e que trouxe bastante comida; mas que pretende demitir o caseiro, talvez o único vínculo que ainda guardam com a realidade.

Todos mortos e desaparecidos, restarão na casa apenas os irmãos e o temor ao pai. O mal estar, que os rodeia na presença física do cadáver sepulto, é multiplicado: os irmãos se beijam, se fundem em uma só pessoa. E enquanto Heitor vê na irmã uma possibilidade real de desejo erótico, de superação amorosa, Matilde, no ato final, sugere que brotava de sua passividade a força maligna de destruição e horror que aprisionou a família e a razão coletiva. Percorre o rosto, os olhos, com enlevo narcísico, assegurando o triunfo de ter sobrevivido.

Embora o carisma de Dina Sfat, Nelson Xavier e Paulo José sustente grande parte das questões que o filme provoca, deve-se notar também a bela fotografia de Rogério Noel -- morto precocemente, aos 22 anos -- e a trilha-sonora de Nelson Ângelo -- futuro parceiro da cantora Joyce. Além deles, há as andanças da câmera, que passeia serelepe pelo elevado do Joá -- então em construção, sem a pista de cima, direção São Conrado-Barra -- e, mais adiante, pelo coração de Copacabana, no trecho precioso da Av. Copacabana entre as ruas Dias da Rocha e Santa Clara.

Desprezado por muitos admiradores da obra de Domingos de Oliveira, "A Culpa" me parece um dos melhores filmes do diretor -- tão coerente na arte de agradar ao público, que mesmo neste esforço hermético segura as rédeas, mantendo o compromisso de contar uma boa história. E ainda que não consentisse: aquele olhar majestoso e possuído de Matilde diante do espelho, tomada pela soberba e insanidade, valeria os 80 minutos anteriores.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

Nenhum comentário: