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quinta-feira, 24 de junho de 2010

NOITE VAZIA


“Noite vazia”, uma das obras primas do cinema brasileiro, não é um filme acidental. Não se trata de dizermos aqui alguma coisa sobre a reunião de dois homens que levam prostitutas para uma garçonnière e, terminado o tempo protocolar, dirigem de volta para casa levando flores para as respeitosas esposas.

Não é bem assim. A princípio - em um dos flashes que espocam nos primeiros cinco minutos do filme - sabemos de relance que são 08:04 horas da noite. Gatos, evidentemente, já estão pardos, diria o boêmio Antônio Maria. Alguma coisa vai acontecer.

Mas para que acontecesse algo, já fôra necessário que o espectador se ambientasse no universo do diretor e roteirista, Walter Hugo Khouri. Em preto e branco, sob a música do maestro Rogério Duprat – sempre parceiro em projetos futuros – vemos rostos de bonecos de porcelana, quebrados, em série, enquanto a grafia sessentista enumera os créditos do filme. Dentre as curiosidades, registre-se que foi “realizado nos estúdios da Vera Cruz”, que Khouri arrendava, e conta com a participação incidental do bossanovista Zimbo Trio.

A seguir, mostra-se uma São Paulo que mais parece saída de antigos one-reel movies rodados na Times Square, NY. Letreiros luminosos, flashes, vida urbana. Neste instante surge o pai devotado, milionário (Luiz, interpretado por Mário Benvenuti), dando tapinhas nas costas do filhinho (Wilfred Khouri, filho do diretor) para que saia do carro e deixe-o dirigir.

Em alguma outra parte da cidade, um jovem depressivo (Nelson, interpretado pelo lindo Gabriele Tinti) deixa a namorada em meio a uma crise, no que parece ser a constante de uma doença que sempre lhe deixa assim, anestesiado diante do mundo. O amigo Luiz propõe-lhe o prazeroso esporte da caça noturna (“Você se esqueceu, rapaz? Não existe mulher séria neste mundo.”)

Passam por alguns lugares antes do encontro fatal. Quando este ocorre, surge o quadrilátero que eleva o filme e tira-o daquela banalidade de busca e sexo puro e simples, comuns aos filmes habitados em garçonnières: Os rapazes convidam as duas escortes (Odete Lara e Norma Bengell) de um senhor conhecido – idoso, impotente, ridicularizado – para o apartamento de Luiz.

Se a combustão entre as personalidades dos homens (o canalha assumido versus o deprimido encalacrado) era visível, o conflito aumenta na medida em que os caráteres opostos das duas (Odete, fria e assertiva; Bengell confusa e domesticada) interagem com os daqueles dois. Como num jogo matemático, cada qual relaciona-se com o que está ao lado e de cada combinação surgem resultados diferentes.

Luiz deseja o domínio sobre Odete, que humilha-o e pede por Nelson, que olhava para Bengell e esta para ele como se ambos se entendessem profundamente. Nelson contenta-se em ver Odete escolher o amigo bonitão para a primeira transa da noite, mas, terminada a rodada inicial de atividades com Bengell, pula da cama e comanda Nelson a ir ver a outra, deixando o caminho livre.

Em determinado momento, tem-se a impressão de que os quatro tornaram-se “amigos”? Algo próximo disso. Entendem-se e gostam – ainda que não verbalizem, no caso de Luiz e Odete – do fato de assistirem na sala de estar à projeção de Super-8 pornográficos.

É nesta hora que um certo “Darcy” Cardoso – creditado assim na abertura –, futuro David Cardoso, rei da pornochanchada dos anos 70, faz aos vinte e dois anos de idade uma pequena ponta, como o rapazinho que leva uma moça de família ao apartamento, supondo que estivesse vago.

Após a negativa da moça para que haja – nas palavras do personagem de Benvenuti – uma “união de esforços”, Luiz anuncia o pedido clássico, voyeurístico, do tête-à-tête lésbico. Odete, a dominante, apesar de refugar de início, devora sadisticamente a outra, que, fragilizada, chora. E muito.

Ora vejam, onde mais uma prostituta choraria, pelos motivos que chora, após um pedido desses, senão em um filme de Khouri? Porque a situação a faz lembrar, em flashback, não de uma infância agreste, flagelada – como típico nos filmes brasileiros rodados na época, 1964 – mas de um tempo difuso, não esclarecido. Quando percebe que fora do apartamento a chuva castiga a varanda, a menina encontra-se com a prostituta do tempo presente, vai até lá e estaca, deixando-se molhar. Os outros três acompanham.

Recompondo-se, a seguir, já na banheira, a instabilidade da personagem de Bengell é percebida por Tinti – “Você ficou feliz tão depressa” – pois, afinal, não sentem o mesmo desespero e se entendem profundamente? No outro cômodo a discussão permanece entre Luiz e Odete, que se trai afirmando “bom, ninguém está pedindo para ir embora”. Pois é, os quatro gostam de tudo o que está acontecendo.

O empecilho, porém, é que o final era conhecido. A noite não é única, é vazia. A ela seguirão outras. Transformados ou não, aturdidos ou fingindo desprezo pelo que aconteceu, tudo volta ao início.

Nelson afasta-se de Bengell, no dia seguinte, na cama em que dormiam abraçados após terem, visivelmente, feito amor. Luiz religa a chave do carro, deixando cada qual no local de origem e refazendo propostas de novas saídas ao outro, que sempre hesita mas sempre aceita. Odete olha, impassível, para Bengell, já no elevador do prédio em que moram juntas, subindo com os pacotes de compras para o café da manhã. Bengell sorri nostálgica e entorpecida, para o nada, mas quando se lembrar de que a rotina se impôs, contrairá o rosto, em um último close.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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