Powered By Blogger

quinta-feira, 24 de junho de 2010

AS DEUSAS


A diluição do tempo, a ventania, anima, ingratidão, competição feminina. Um pacote contendo esses temas foi apresentado ao público pela Servicine – de Antônio Pólo Galante e Alfredo Palácios – em “As Deusas” (1972), décimo-primeiro filme dirigido e roteirizado por Walter Hugo Khouri.

A montagem dos segundos iniciais entrega o ouro e dá uma cara para o contexto acima. Por sinal, nos cinco primeiros minutos encontramos também a cerimônia de apresentação da casa – marcante em “O Anjo da Noite” (1974) –, o quarto personagem do elenco formado ainda por Lilian Lemmertz (Ângela), Mario Benvenutti (Paulo) e Kate Hansen (Ana).

Para lá seguem Paulo e Ângela – paciente psiquiátrica de Ana, que lhe recomenda uma temporada na mansão de sua propriedade. Lemmertz, em outro desbunde de interpretação, lê a carta assinada pela doutora em um tom filial acertadíssimo, como se realmente fosse a menina pequena à procura de proteção, acatando uma ordem irrecusável.

Desde o momento em que o carro de Ângela e Paulo chega no jardim – estacionando sob os galhos de uma árvore imensa, que parece engoli-los – o expressionismo de Khouri, como ele próprio gostava de apontar, salta aos olhos. Naquele instante o jardim, a floresta, a ventania, o mundo sensorial contam uma parte substancial da história.

Sem locutor – em voice-off ou over –, Khouri conseguiu falar milhões, partindo apenas da escolha dos quadros e da movimentação da câmera. Alerta o espectador para o fato de que a floresta, as árvores – tateadas por Ângela – e o ambiente vegetal são tão onipotentes perante os humanos que cabe a eles sentirem-se subjugados, dentro e fora da casa, ao que existe de mais animalesco em cada um.

A explicação para o triângulo doentio formado entre os atores está no conceito de anima – pronunciado em voz alta por Ana e Paulo diversas vezes e escrito numa das paredes da casa que pertenceu à avó de Ana, metade flapper, metade psicanalista, idealizada tremendamente pela neta.

Anima – em outras palavras, o arquétipo feminino, segundo a definição de Carl Gustav Jung – une Paulo a Ângela (“Foi isso o que me fascinou nela. Essa loucura, essa voragem”) e Ângela a Ana (“É uma pena que um rosto como esse tenha que envelhecer, acabar. [...] Eu sempre fico imaginando como devem ser os ossos de uma pessoa, debaixo da carne”, fala enquanto acaricia a pele da outra).

O clima de sexo vai aumentando no trisal (casal de três). Ângela submerge alguns instantes na banheira, como uma Ofélia chantagista, mostrando-se para Ana. Nadam juntas em uma represa (“Você parece uma deusa”, os lábios semi-submersos de Lemmertz, o olhar satisfeito de Hansen) e momentos depois Ana segue um coelhinho branco pelo gramado da casa, tal qual a Alice de Lewis Carroll, querendo ir ao outro lado do espelho. Ainda cheios de culpa, durante a festa de aniversário de Ângela os três dormem juntos.

Correndo em paralelo, os cenários art déco na área interna da casa reafirmam a todo tempo a presença da avó de Ana. Como um vulto, um fantasma, que construiu o local em 1927 e faleceu não se sabe bem por quê. Juntando as pontas do mistério, apostamos em um suicídio da velha senhora, não apenas porque o assunto é tabu na família e ela morreu durante uma crise de depressão braba, mas também porque existe um buraco de bala na vidraça principal da casa – o suicídio, portanto, desfaria o clima de estabilidade que se esperaria de alguém tão maravilhoso e inatingível.

Inatingível também não deixa de ser Ângela para Ana e vice-versa; a separação acaba acontecendo como um mal necessário. Há um desejo entre as duas que nunca poderá ser preenchido, pois a fragilidade da médica e da paciente são tão evidentes que levam ao abandono da suposta-mãe (Ana), fazendo a filha pressentir uma nova crise chegando.

Aqui o expressionismo retorna, o vento uiva, o Opala se afasta da casa e chegamos ao fim.

Recheando a narrativa com o que os críticos antigos gostavam de chamar de “tempos-mortos” – ou seja, a quebra da ação com cenas não muito externalizadas, visíveis –, Khouri conta pouco a pouco o comportamento interno do trio. A montagem de Sylvio Renoldi ajuda, complementando uma equipe técnica que possui outras curiosidades.

A Companhia Cinematográfica Vera Cruz – na época já arrendada heroicamente por Khouri e seu irmão, William – cuidou da sonorização, dividindo-a com a Odil Fonobrasil. O câmera, Rupert Khouri – pseudônimo de Walter Hugo –, foi auxiliado por Antonio Meliande. Na fotografia, Rudolf Icsey – que acompanhava W. H. desde os tempos de “Estranho Encontro” (1958) –, e a música de Rogério Duprat – a partir da “Fantasia em Ré Menor de Mozart” e intervenções ocasionais de Billie Holiday, como de praxe nos sets khourianos.

Um dado em particular continua perturbador, remetendo ao medo mais mesquinho sobre nossa finitude, sobre o “dormir e não acordar mais”. A certa altura, Ângela pergunta a Ana uma dúvida que acompanha boa parte da humanidade: “E nós, como é que vamos estar daqui a trinta anos? Mortas ou velhas?”. Pois bem, o filme é de 1972. Lilian morreu em 1986, dezesseis anos antes do prazo. Parando para pensar, e nós, como é que vamos estar daqui a trinta anos?
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

Nenhum comentário: