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quinta-feira, 24 de junho de 2010

EU MATEI LÚCIO FLÁVIO


Depois da obra-prima “Ódio” – que arremessou o cinema policial brasileiro dos anos 70 à altura dos seus similares americanos e europeus – e de “República dos Assassinos” – o épico do gênero – temos completando a trilogia sagrada deste estilo cinematográfico o clássico “Eu Matei Lúcio Flávio” (1979), dirigido por Antônio Calmon, mas que é sinônimo do ator, produtor e por que não dizer?, também gênio do audiovisual brasileiro, Jece Valadão.

“Eu Matei Lúcio Flávio” não tem disfarces em dialogar com o filme de Hector Babenco, “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”. Pelo contrário, em uma primeira impressão, a produção da Magnus Filmes pode parecer exploração barata do sucesso de Babenco. A questão é que o filme de Jece é muito, mas muito superior ao filme-denúncia de dois anos antes.

Com roteiro de Alberto Magno e Leopoldo Serran, “Eu Matei Lúcio Flávio” é um filme fascista, reacionário, em deslumbre pró-estado e pró-polícia. Não se enganem: isso o faz maravilhoso, aterrador e, como todo bom policial, doente de um sadismo implacável.

Mariel Mariscott de Mattos (Jece Valadão) é um inspetor da polícia civil que, por sua “firmeza”, se torna famoso em um Rio de Janeiro já assustado com a violência, na metade da década. Não demora muito e Mariel está no centro das atenções, freqüentando as altas rodas da Zona Sul e sendo recebido em casas de boa família – onde, invariavelmente, deixa algum marido corno.

Antes de ser policial, Mariel foi salva-vidas em Copacabana, depois guarda-costas de políticos corruptos. Sua trajetória é mostrada em detalhes. No início da carreira, Mariel salva uma criança do afogamento e depois, em cena surreal, é visto no motel com a mãe da criança (Maria Lúcia Dahl), ao som de (acredite se quiser) Belchior cantando “A Divina Comédia Humana”. Com a madame aos seus pés, o feio e grosso Mariel se olha no espelho e dá o vaticínio: “Mariel, você é demais!”.

Paralela à sua trajetória policial-sexual há uma história de amor, entre ele e a prostituta viciada em drogas Margarida Maria (Monique Lafond, em interpretação fora de órbita), que conhece ao salvar o pai desta do suicídio no mar de Copacabana. Aqui, outro diálogo luxuoso, quando Margarida avisa a Mariel que seu pai voltou ao mar e morreu: “Ele sempre viveu aqui em Copacabana e quis morrer aqui em Copacabana”. Detalhe que Margarida diz isso enquanto é apalpada por dois turistas franceses, com quem estava fazendo um programa.

“Eu Matei Lúcio Flávio” é uma antologia destas pérolas. Quando Mariel chega na polícia, começa a solucionar os crimes no bairro à sua maneira: matando. A cena do assalto na farmácia Vitória Régia, do Lido, tem a mesma carga de violência e crueldade encontrada nos quinze minutos iniciais de “Ódio”. Os bandidos em busca de Mandrix (“Mandrix, Mandrake, tio, porra!”) resolvem estuprar a jovem balconista (Maria Zilda, em franco início de carreira), penetrando sua vagina com um revólver, em trucagem incrivelmente realista. Logo a equipe de Mariel chega (ao som do trash-disco Shake Your Body) e, com um ar de escárnio, mandam todo mundo para o além, como se Copacabana fosse o desbrave do Velho Oeste.

Lúcio Flávio (Paulo Ramos) aparece no filme apenas como a isca maior do alpinismo social de Mariscotte. Rumo ao topo, acaba por integrar o grupo de extermínio “Homens de Ouro” – o mesmo retratado em “República dos Assassinos”. Com licença oficial para matar, Mariel e seus capangas promovem uma chacina. Enquanto torturam um criminoso, a equipe de policiais coloca para tocar um disco de Roberto Carlos, “Lady Laura”. Em seguida, Anselmo Vasconcellos, em papel repugnante e magistral como sempre, puxa uma faca do bolso, repete monocordicamente o lema do grupo, “Marginal tem mais é que morrer”, e esfaqueia o corpo torturado, que é exposto na batida de um ponto de macumba no alto da estátua de São Sebastião, o padroeiro da cidade.

Se o que foi relatado até aqui não basta para convencer os leitores de que este é um filme sensacional, acontece o seguinte: entre idas e vindas, Mariel namora a desequilibrada Margarida Maria. Margarida toma pico em corredores de edifícios de quitinetes, se entrega de pulsos cortados ao amante e acaba internada no Hospital Pinel, onde morre. Desesperado, Mariel rouba o carro do necrotério, murmura “como indigente, vocês vão enterrar a mãe de vocês”, tira o cadáver da geladeira e carrega o corpo nu de Monique Lafond por uma estrada vazia, até encontrar um cemitério. Durante o enterro solitário (com trilha-sonora de “As Rosas não Falam”) é preso por seus colegas policiais.

O cerco se fecha e Mariel, entre idas e vindas da cadeia por conta de seus desvarios, acaba processado junto com outros “homens de ouro” e levado para Ilha Grande, presídio onde brotava o ovo da serpente que viraria o Comando Vermelho. Lá está Lúcio Flávio e o duelo policiais contra bandidos se inicia. Lúcio Flávio é morto. Quando tentam acabar com Mariel, ele se desvencilha e sobrevive. O filme acaba em Jece, com um colar de caveira e ar de triunfo, olhando pelas grades gelidamente. Dá vontade de levantar, aplaudir e dizer “obrigado”.

Mariel Mariscott, bom que se ressalte, não é personagem ficcional. Sua lenda e suas amantes ainda rondam Copacabana, o bairro mais famoso do Brasil, lugar que certamente atraía seu espírito vaidoso, ávido de fama, nobreza e publicidade.

Assim, Mariel foi o artífice deste filme alucinado, escandaloso, sórdido e psicopata, que ao tentar desglamourizar o lugar, o homem e a história, só cria em volta desse mal-estar (anti) civilizatório uma atração irresistível. É, com certeza, um filme a ser visto para se cair de joelhos e compreender o quanto o cinema brasileiro vale a pena. Algo mais precisa ser dito? Ah, sim: antes de ser assassinado, um dos comparsas de Mariel levanta as mãos para o céu e grita: “Salve a Umbanda. Entrego minha alma aos homens da encruzilhada”. E cai duro, fuzilado.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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