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quinta-feira, 24 de junho de 2010

RAINHA DIABA


“Rainha Diaba”, de 1974, é um monumento. Críticas apressadas de jornalistas idem taxaram o filme – na época do seu surpreendente relançamento em dvd – como uma ode tresloucada ao “homossexualismo marginal”. As mesmas pessoas que produzem páginas e páginas sobre qualquer blockbuster norte-americano, sofrem de calafrios para escreverem umas poucas linhas sobre as obras-primas rodadas na esquina de suas casas. Qualquer filme brasileiro esquecido (que não renda jabaculê) vira superficial, simplista e facilmente rotulável. Pura ignorância.

Basta dizer que antes de Almodóvar, antes de John Waters, houve Antônio Carlos Fontoura. Levemente inspirado no malandro da vida real, Madame Satã, Fontoura aliou-se ao gigantismo de Milton Gonçalves – com certeza aqui, sem nenhum exagero, em uma das dez maiores interpretações da história do cinema mundial – e deu à luz um filme sublime, inovador, que ainda hoje produz indisfarçável mal-estar em quem, sentado no conforto de sua casa, o assista.

A imagem que se tem de Satã é a do “pederasta” – assim fichado pela polícia varguista de seu tempo –, underground total, com plumas, brilhos e paetês, gingado de capoeirista e apetite sexual intenso. Já a ficcional Diaba (Milton Gonçalves) guarda destas qualidades apenas algumas, pois não é o solitário réu da Lapa, cavaleiro andante de punguistas e contraventores. É dono de mais de uma dezena de bocas, controla o narcotráfico, estabelece relações maternais com o séquito de outras moçoilas, que protegem-na como os aprendizes à mestra.

Diaba é criminosa nata: aplica mão de ferro para garantir a qualidade dos serviços à população mas, por outro lado, preocupa-se em cozinhar quitutes para a marginália gay que o cerca, apavorado que estava com os traidores que tentavam acabar com sua autoridade empresarial.

Os traidores, como o ovo da serpente, estavam ali mesmo, guardados no ninho, e Diaba mal sabia. Liderados pelo amigo Zeca Catitu (Nelson Xavier), Manco (Wilson Grey!), Anão (Lutero Luiz), Violeta (Yara Cortes) – sócia do prostíbulo mantido pela Rainha – Coisa Ruim (Procópio Mariano), e outros empreendedores, celebram um levante para desmobilizarem o ofício e tomarem o controle dos negócios.

Em outra ponta da narrativa, fluindo em paralelo, o casal Bereco (Stepan Nercessian) e Isa Gonzalez (Odete Lara): cafetão e prostituta. Ele, rapaz novo, bonito, cooptado por Catitu, junta forças ao golpe, servindo, tolamente, de bucha de canhão. Ela, seduzida, seviciada, suja, cantora do “Leite da Mulher Amada Night Club”, local em que seria posteriormente seqüestrada e torturada pela cáfila de amigas da Diaba.

Neste momento as narrativas se cruzam e, quadros depois, no paroxismo da descoberta de Bereco, Diaba encontra seu fim. O garoto degola-a, é em seguida morto por Catitu, Catitu e amigos são em seguida mortos por Violeta, e Violeta – única a restar do levante – é morta, nos esgares finais, por Diaba, ensangüentada, que ressurge na sala e junta mais dois corpos – o seu e o da vítima – à dúzia que se amontoava na sala.

Percebam que a exuberância do filme reside em detalhes e, como transgressor do audiovisual, descrevê-lo faz diminuir um pouco sua força. Apenas quem assistiu às cenas compreenderá o por quê de ser este um dos marcos da história do cinema.

Mostrem a Quentin Tarantino a chacina referida acima; o momento em que os personagens, um por um, se apresentam ao espectador; a violência contra Isa no salão de cabeleireiro; as meninas em momentos de delírio ultra-psicopático; a revolta da prostituta, molestada, torturada; os créditos em papel crepom, cartolina e hidrocor. São exemplos do som e da fúria, da inventividade nacional, do talento que contorna a falta de dinheiro e cria, cria muito, bem mais do que a vã pasteurização de algumas películas atuais deixa supor.

O argumento de Plínio Marcos – dramaturgo, ator, dionisíaco, um vulcão, falecido em 1999 – e do diretor, Antônio Carlos Fontoura, inventa focos múltiplos de ação no roteiro escrito pelo segundo, o que tende a aguçar a vontade do elenco. Digo isto porque não apenas Milton Gonçalves é verdadeiramente indescritível, mas os bandidos, Odete Lara e a trupe de amigas (formada dentre outros, por Perfeito Fortuna, que deu um tempo nas dunas de Ipanema para incursão ao lado menos aristocrático da cidade) assustam, brutalizam e tornam o filme um momento de lucidez, certeiro ao atingir a alma kitsch e doentia dos personagens.

Vale a pena citar a fotografia de José Medeiros – concretizando a saturação pedida pelo universo retratado –; o figurino de Ângelo de Aquino; a música, atordoante, a cargo de Guilherme Magalhães Vaz; a edição de Rafael Justo Valverde; a co-produção da Lanterna Mágica, R.F. Farias, Filmes de Lírio e Ventania Filmes – esta última do saudoso Paulo Porto, neto do cacique Ventania, que dera o nome à firma.

Antônio Carlos Fontoura é um realizador bissexto. Traz no currículo o seminal “Copacabana Me Engana “ (1968) – também com Odete Lara, estréia de Carlo Mossy no cinema – e “Espelho de Carne”(1984) – clássico da “Sala Especial”, com Dênis Carvalho e Daniel Filho em momentos de suprema intimidade. Dirigiu também programas de tv, dentre eles “Plantão de Polícia” e “Ciranda, Cirandinha”.

O trabalho de Fontoura é inspirador – porque nunca previsível –, apesar de a produção cinematográfica brasileira se ressentir da quantidade de histórias que poderiam ter vindo a público e não vingaram. Incansável, mas sabendo operar além dos grandes refletores e da badalação da mídia, Fontoura é destes mestres que a arte nacional guarda próximo ao peito, e gerações recentes procuram ávidas, em busca de informações. Ao encontrá-las, saberão um pouco mais de si mesmas e, quem sabe, das delícias da criação humana.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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