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quinta-feira, 24 de junho de 2010

O CORPO ARDENTE.


Eixo da inquietação khouriana – a ponto de ser eleito o filme preferido do diretor, Walter Hugo Khouri – “O Corpo Ardente” (1966) manipula erotismo e esterilidade emocional a partir dos arquétipos de mãe – Márcia (Barbara Laage) – e filho – Roberto (Wilfred Khouri).

Os intérpretes mudariam quinze anos depois, em “Eros, O Deus do Amor” (1981). Dina Sfat no referencial materno, Roberto Maia no papel de Marcelo – alter-ego mais conhecido do realizador paulistano.

Note-se que a denominação diferente não impede que Roberto também seja Marcelo, pois o distanciamento entre ambos se dá no plano cronológico, e não essencial. Roberto vive a infância – como o Hugo de “Amor Estranho Amor”. Marcelo atravessa a adolescência – vide “O Último Êxtase” – e a maturidade – a exemplo de “Eros” e “Eu”.

Há, inclusive, um prolongamento natural entre “Eros” e “O Corpo Ardente”. Se o primeiro consagra o homem de meia-idade, insaciável, vazio, o segundo remete à fonte, ao início de tudo, e aproxima-se da mãe. Márcia é retratada por inteiro; Roberto-Marcelo simplesmente coadjuva.

Casada – com o personagem inominado de Pedro Paulo Hatheyer –, adúltera – com os de Mario Benvenutti e Miguel di Pietro –, traída – pela de Lilian Lemmertz, estreando no cinema –, a mulher de trinta e tantos anos procura refúgio no sítio da família, na região serrana, aonde passava férias quando criança. Leva consigo Roberto, e se a vegetação soporífera ao redor não consegue aplacar o comportamento depressivo, decide subir as montanhas como fazia quando pequena. Volta à infância, arrasta o filho junto e através do passado reconstrói o presente: atinge o cume e ao chegar por lá, consagra o filho como ídolo, colocando-o no trono de pedra. Escolhe para cetro um galho de árvore e, como ornamento, uma pedra oval, na mão esquerda.

― Sua Majestade, o rei das pedras. O rei.
― Vem aqui comigo.
― Não, [olhando para o lado] eu sento aqui. Porque o rei é você.

Percebam a cena como quem se aproxima de um achado gigantesco, o fio da meada. Roberto no topo do nada, no meio da neblina, estabelecendo com a mãe um vínculo que por ser intraduzível, é recontado em imagem.

O amor a que assistimos vem embrulhado na memória, daí a composição do quadro envolver a neblina típica das cordilheiras de Itatiaia, cidade ao sul do Estado do Rio. A memória do Roberto-Marcelo passará a ser reconhecida em outros filmes de Khouri pelo uso desta locação. Aqueles que ainda não associaram o lugar ao fato, basta lembrarem-se das últimas cenas de “Eros”. O trono de pedra expressa o drama edipiano.

Roberto veria, ainda, o cavalo puro sangue, indomável – simbologia evidente para o desejo sexual, compartilhado por mãe e filho, que então percebe o rubor da mãe. O nervosismo do filho retorna nos momentos finais, quando assistem juntos às gravações realizadas numa câmera Super-8, presente do pai. A criada, Glória (Dina Sfat, em seu segundo filme) aparece rapidamente.

O pai em “Eros” vibrava com os instintos priápicos de Marcelo, cedendo-lhe a garçonnière. Aqui em “Corpo Ardente” é ele que ordena a perseguição ao cavalo, a mãe ao volante do carro, o instante do close pela crina e músculos do animal. Em poucos takes “O Corpo Ardente” faz convergir pai, mãe e filho, e deste caldo temos uma espécie de prefácio para as imperfeições futuras de Marcelo.

Aspecto crucial para tanto, a montagem de Mauro Alice excede as expectativas. Através dela o humor de Márcia é percebido por Roberto e pelo público. Um exemplo talvez explique melhor. Depois das férias na casa de campo, Márcia olha para o afresco no fundo de um chafariz, imagem que simula a morte por afogamento da protagonista. Afasta-o com um golpe das mãos sobre a água, as ondinhas balançam a visão do desenho que, mesmo assim, permanece ao fundo.

A própria passagem do campo à cidade é apresentada em “O Corpo Ardente” a partir de descontinuidades temporais, que se alternam em pelo menos cinco momentos. Tempo 1: o affair de Márcia e Benvenutti; tempo 2: a insatisfação de Márcia com Benevenutti; tempo 3: o affair do marido com Lemmertz; tempo 4: a estação em Itatiaia; tempo 5: a festa que inicia, permeia e finaliza o filme. Na festa, há a promessa de um tempo 6, não mostrado à platéia, em que Márcia envolve-se com o novo amante (Pietro).

Mas aliada à ascese artística de Khouri – e que, conforme visto, extrapolou as fronteiras do filme –, existem curiosidades em “O Corpo Ardente” que nem sempre chegam ao conhecimento do público. Como nota de pé de página, podemos citar a toilette da francesa Barbara Laage, confeccionada pelo costureiro Clodovil, em sua fase dândi.

Quanto à mais pitoresca, refere-se ao diretor de produção, David Cardoso – em ponta, ao lado de Sérgio Hingst, como peões. Reza a lenda que o embaixador do Mato Grosso do Sul foi encarregado de tomar conta do alazão. Dentre outras tarefas, teve de acalmá-lo sexualmente – recurso comum em fazendas – com uma loção.

Em “O Corpo Ardente” Khouri ensaiava a criação de uma narrativa fílmica que se irradiaria por anos a fio. Saído da refrega de “Noite Vazia” (1964), em ocasiões posteriores precisou ser explícito, carregando nas cores para arrebanhar a bilheteria e prosseguir. No país que vira as costas aos que não se instalam nos monopólios bancados por incentivos governamentais ou privados, admira-se que existam épicos modernos, como a obra seminal que revisitamos agora. Logo ali, na esquina da eternidade alguém consolidou a paixão do filho pela mãe altiva; presságio de um amor primitivo e traiçoeiro.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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