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quinta-feira, 24 de junho de 2010

ESTRELA NUA.


A morte era obsessão para Nelson Rodrigues. Suburbano universal, criado no então longínqüo bairro de Aldeia Campista, no Rio, Nelson aproximava-se da morte com a curiosidade dos tempos de menino, quando assistia de calças curtas a velórios “sicilianos”, em que as viúvas agarravam-se aos caixões.

Nelson partiu aos 68 anos, em 21 de dezembro de 1980. Enquanto celebravam-se ainda os vinte e cinco anos de seu desaparecimento, no dia 22 do mesmo mês de 2005, há exatamente uma semana atrás, falecia prematuramente o diretor José Antônio Garcia, aos 50 anos de idade.

Além de “O Corpo” (1991), filme que sempre surge à tona quando se toca na produção cinematográfica de José Antônio, a trilogia formada por “O Olho Mágico do Amor” (1981), “Onda Nova” (1983) e “Estrela Nua” (1984) é particularmente saborosa. São obras da mais plena juventude e todas elas co-dirigidas em parceria com o amigo Ícaro Martins.

O roteiro de Garcia “Estrela Nua” traz também uma ponte interessante para o imaginário de Nelson Rodrigues – aspecto nem sempre diagnosticado por parte da crítica –, em um elo de ligação que reflete o entendimento artístico entre os dois.

Glória, dubladora escolhida para substituir Ângela (Cristina Aché) – estrela de cinema, vítima de um acidente de carro –, incorpora fantasmagoricamente a personagem vivida pela atriz. Incestuosa, a personagem de Ângela era adepta de um romance doentio com o pai, levado às últimas consequências com todas as fantasias do gênero.

“O Casamento” – livro célebre de Nelson, espécie de “Ritual dos Sádicos” da literatura nacional, em função dos problemas com a censura – tinha uma mesma personagem central chamada Glória, filha do Dr. Sabino, que sublimava o amor carnal pelo pai através de gestos e atenções. José Antonio e Ícaro colocam o pé no acelerador e em diálogos explícitos ou subentendidos, usam da mitologia rodrigueana combinada com a tendência de subversão da linguagem fílmica.

Mas este é apenas um dos fragmentos que encantam o espectador de “Estrela Nua”. São muitas as informações jogadas pela dupla e que vão se acumulando. Clarice Lispector – lida por Glória e recuperada na narrativa –; cigarros Hollywood – nem tanto pelo merchandising, mas pela lembrança do cinemão americano –; o poster de “Quelé do Pajeú” – filme maldito de Anselmo Duarte –; as músicas dos Mutantes – quando pairava sobre o grupo um certo ostracismo, nos anos oitenta –; Jean-Luc Godard de “Uma Mulher é Uma Mulher” – no apelo bastante feminino do filme.

Assim, a manipulação das regras do cinema – traço marcante em outro colega de “geração” da dupla, Guilherme de Almeida Prado – é um mote utilizado diversas vezes. Quando acaba a projeção, percebemos que na verdade assistimos a três filmes embalados em um único: o “Estrela Nua” de Garcia e Martins; o outro, dublado por Glória; e o terceiro, sonhado por Glória e Ângela, quando então percebemos que são amantes.

Outra característica da trilogia Garcia-Martins está nos personagens homossexuais – lésbicas e gays –, com a non-chalance de quem não via neles qualquer tabu que desmerecesse sua apresentação ao público brasileiro. Moralistas e conservadores devem ficar até hoje com os pêlos em pé ao acompanharem as andanças de Glória e Ângela, do casal Tamara (Vera Zimmerman) e Renée (Selma Egrei), além de Serginho (Patricio Bisso, na voz de Sérgio Mamberti), freqüentador de sauna gay.

Há também uma trupe de profissionais repetida nos filmes, o que os torna afetivamente próximos dos projetos que os diretores criavam. Camurati e Moreyra aparecem nos três, Bisso e Zimmerman em “Estrela Nua” e “Onda Nova”, Arrigo Barnabé – músico e ator em “O Olhar” e “Estrela Nua”. José Antônio e Ícaro surgem em aparições-relâmpago.

A capacidade de superação da dupla sofreria com a política czarista dos anos Collor. Separados, cada qual tocaria suas atividades, ampliando mesmo a atuação, dividida entre o cinema e o teatro. José Antônio dirigiu em 2005 a peça “A Pecadora Querimada e os Anjos Harmoniosos”, baseada uma vez mais nos escritos de Clarice Lispector – como havia sido “O Corpo” e as citações de “Estrela Nua”.

Para relembrá-lo, vale assistir seus divertidíssimos filmes, repletos de um humor sacana e gaiato que não existe mais. E acima de tudo, pensar na arte como o gigante que engole o mundo, e que despreza a barreira misteriosa da morte, eternizando a vida.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

Um comentário:

nãoseileianaminhacamisa. disse...

ja vi esse post antes...
há uns 5 anos atrás :B
tá bom de botar os créditos pelo menos.