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quinta-feira, 24 de junho de 2010

PORNÔ


Junto com “A Noite das Taras”, David Cardoso e a DaCar Produções saíram com dois outros filmes em episódios, “Aqui, Tarados!” e “Pornô!” (1981), cujos títulos, exponencialmente escandalosos, deixam claro o quanto a necessidade de se vender sexo sob a chancela cinematográfica era grande naqueles tempos.

Ainda assim os filmes seguram as rédeas das coisas, não apelam, e com certeza podemos dizer que os três episódios de “Pornô!” são um espetáculo de razoável apreço pelo bom gosto. Nada muito diferente do que se via na Globo, a partir da década de 90, em seriados como “Dona Flor e Seus Dois Maridos” ou “Presença de Anita”: os mesmos diálogos cheios de insinuações divertidas e pueris, as mesmas incursões (com ousadia ingênua) à intimidade dos personagens em banhos de chuveiro ou ferventes téte-à-tétes.

E se o espectador se divertir assistindo ao clássico “Pornô!” – que de pornô não tem nada, emprestando o termo pela bilheteria – também vai poder notar uma certa discrepância entre os dois primeiros episódios, “As Gazelas” e “O Prazer da Virtude”, que apenas medianos, são redimidos pelo terceiro, “O Gafanhoto”, um exercício de roteiro e direção que deixaria Julio Cortázar ou Salvador Dali empolgados.

“As Gazelas”, dirigido por Luiz Castellini, mostra Bia (Maristela Moreno) e Maria Helena (Patrícia Scalvi) como um desajeitado casal de jovens lésbicas, sendo Maria Helena a caça e Bia a caçadora. Tentando seduzir a amiga, Bia utiliza-se de todos os subterfúgios possíveis para fazer com que a outra se entregue.

A precariedade do argumento é salva – como em todos os filmes da DaCar – pelo cuidado da ambientação e fotografia, deixando a ilusória impressão de que, na virada dos anos 70 para 80, a maioria dos cidadãos comuns habitava suntuosos apartamentos ou mansões nos Jardins, com teto alto e mobiliário antigo.

Já “O Prazer da Virtude”, dirigido por David, é o tipo de veículo que o diretor-ator-produtor adorava. Fazendo par com Matilde Mastrangi, David é Romano, um homem que seduz Ilona e a leva para sua casa, onde os dois iniciam um jogo erótico: Ilona insinua e Romano se defende. Doze horas transcorrem (a informação do tempo durante uma conversa é inútil, mas curiosa) até que Romano consiga que a moça vista um hábito de freira, e finalmente, os dois realizem-se mutuamente. Mais banal do que isso, impossível.

“Pornô!” interessa, na verdade, é por seu terceiro episódio, “O Gafanhoto”, de John Doo, que mostra Marcos (Arthur Rodever), um homem aprisionado em um casarão por uma jovem e atraente mulher cega, Diana (Zélia Diniz), que, no entanto, tem o poder de vigiar os passos do marido através de reflexos nos espelhos da casa. É um plot da Boca do Lixo, tão denso quanto uma pérola surrealista.

Diana limita Marcos de várias formas, principalmente pelo sexo – um erotismo diferente, tátil, onde a cegueira é parte da sedução. Certo dia, Marcos – ressentido pelo controle absoluto da mulher – captura um gafanhoto em um pote de vidro e traça analogias entre sua situação e a do bicho. Sendo os dois prisioneiros, Marcos resolve oferecer à mulher o gafanhoto. Ela, extasiada – ao som infernal de “Born Free”, música-tema do drama leonino de 1966, “A História de Elza” – passa a trocar o marido pelo prazer repugnante do inseto caminhando por seu corpo.

Marcos, enciumado, discute com Diana e num rompante de fúria quebra todos os espelhos da casa, impedindo-a de enxergar e, por extensão, controlá-lo. Como a falta de controle significa morte, a cada espelho quebrado uma cicatriz funda brota no rosto da mulher aterrorizada.

Perfeito em seu simbolismo, “O Gafanhoto” é um tema à parte, trabalhando com elementos da tensão Feminino-Masculino e com a questão psicanalítica dos invasivos e pertubadores mecanismos obsessivos. Por este roteiro e direção, Ody Fraga – que escreveu – e John Doo – que dirigiu – dão uma demonstração de quantos recursos técnicos e criativos possuíam, e do que eram capazes de fazer em cinema, além dos estigmas e preconceitos que cercavam seus trabalhos.

Quanto a David Cardoso, a partir de 1984, 85 começaria a sofrer – como todo o esquema de produção da Boca – o refluxo dos novos tempos, leia-se a explosão do vhs e da pornografia massificada. Sem o poderio financeiro – e o gigantesco mercado consumidor norte-americano – de um Roger Corman, por exemplo, os ágeis e espertos diretores e produtores paulistanos bem que tentavam driblar as adversidades.

O caso de David, que fez até uma tentativa de documentário sobre Aids em 1986, é parte da história. Em trajetória descendente, no retorno ao formato dos episódios – com “Caçadas Eróticas”, de 84 – a DaCar já se rendia aos novos tempos do sexo explícito enxertado na trama, comprometendo um bocado sua criatividade e graça popular.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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