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quinta-feira, 24 de junho de 2010

DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA


Quando realizou “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1971), o diretor Braz Chediak já vinha de uma adaptação bem-sucedida do mais conhecido texto de Plínio Marcos, “Navalha na Carne”.

Quase peças filmadas, as duas produções – de Jece Valadão, na lendária Magnus Filmes – têm em comum a dificuldade de assimilação por parte do espectador, na medida em que Chediak, acertadamente, não faz qualquer concessão ao entretenimento fácil, filmando Plínio Marcos de uma forma que deve ter deixado o próprio dramaturgo surpreendido e orgulhoso.

"Dois Perdidos Numa Noite Suja", a peça de 1966 e o filme, lançado cinco anos depois, contam a história de Tonho (Emiliano Queiroz), migrante pobre que chega à cidade grande em busca de oportunidades. Apesar de ter estudado datilografia e terminado o ginásio (“Eu tenho estudo!”, repete obcecadamente), Tonho vai trabalhar de carregador no mercado de frutas. Lá divide um quarto com Paco (Nelson Xavier), sujeito maledicente e ignorante, que num misto de inveja e oligofrenia, resolve torturar o vizinho de cama com os artifícios mais criativos possíveis.

Durante todo o filme somente os dois falam e os personagens secundários são mínimos, quase invisíveis. Paco manipula Tonho inicialmente com a história de que um certo Negrão estaria prometendo uma surra no recém-chegado. O infeliz Tonho aceita a provocação, se deixa envolver e aos poucos abre sua vida para o insuportável Paco. Em um segundo momento, a questão da inveja é colocada de maneira reversa e Tonho, que precisa de um sapato para procurar emprego, atormenta-se com o fato de que Paco tem um sapato novinho nos pés, presenteado por alguma alma caridosa.

Como em qualquer relação doentia, os dois se completam e necessitam mutuamente. Paco incita Tonho rumo ao abismo, com um machismo que hoje soa anacrônico em demasia. Tonho é tão sozinho na cidade – no original, Santos; no filme, Rio de Janeiro – que encontra na monomania destrutiva de Paco uma espécie de conforto solidário.

Juntos planejam um assalto que, depois de executado, torna a dinâmica da dupla ainda mais simbiótica. Fica claro que Paco projeta suas desvalorizações e paranóias em Tonho e o outro idem. Como a isca é fácil do espectador morder, aos poucos o olhar cansa e dependemos da performance dos atores para que nossa atenção não seja dispersa.

Nesse ponto, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier são perfeitos e, ligados à ambientação lúgubre e insalubre, vão em crescendo até que um fim seco apareça na tela, algo inconcebível para um filme comercial hoje, trinta e cinco anos depois. Somando-se a essa aridez de recursos, resta ainda a dificuldade de assimilarmos Paco, uma das figuras mais contraproducentes que o teatro já concebeu.

Obcecado por seu machismo de anedota, o personagem ganha na refilmagem que José Joffily fez em 2002 algumas características que o tornam andrógino e sedutor na pele de Débora Falabella. Mas em 1971 o roteiro optou pela similaridade ao original – e o que temos é um protagonista tão impossível que torcemos para que Tonho abandone sua passividade e mostre de uma vez por todas que é sim, homem, de preferência no couro do incrédulo alucinado.

Presos ao quarto de fundos onde moram, Tonho e Paco mereceram adaptações teatrais em vários países do mundo, colaborando para a fama do dramaturgo santista, morto em 1999. Testado várias vezes no cinema, Plínio Marcos sobrevive com folga, e esta criação de Braz Chediak já antecipava de certa forma os futuros acertos do diretor com textos de Nelson Rodrigues – quando, a exemplo do universo de “Dois Perdidos”, a transposição ganhava em fôlego cinematográfico o que perdia em liberdade dramática e grandeza cênica.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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