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quinta-feira, 24 de junho de 2010

LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA


Em 1977 um jovem argentino, com cara de hippie, bateu na porta da casa do jornalista e escritor José Louzeiro, no Rio. Vindo de São Paulo, o moço queria adaptar o romance-reportagem de Louzeiro, "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia", para o cinema.

Acreditando no ímpeto do jovem, que se chamava Héctor, Louzeiro passou por cima de uma proposta de Roberto Farias e cedeu os direitos. Quando voltou do Festival de Cannes, Farias não gostou nem um pouco do arranjo e se desentendeu com o escritor.

O roteiro acabou sendo escrito por Louzeiro e Jorge Durán -- e o papel principal entregue ao irmão do preterido Roberto, Reginaldo. Tranquilizados os ânimos, realizaram um dos melhores policiais brasileiros da década de 70, quando o gênero alcançou no país um nível de expressão e criatividade ímpares.

Mas vamos recuar no tempo e desvendar o mistério: quem era o argentino que impressionou Louzeiro naquela tarde em que o jornalista, atrasado para o trabalho, ouviu suas considerações?

Héctor Eduardo Babenco foi criado em Mar del Plata, famoso balneário na província de Buenos Aires, filho de pai portenho e mãe polonesa. O pai, dono de uma mercearia em Mardel -- como os argentinos chamam carinhosamente a cidade -- ficou doente, vendeu seu negócio e o rapaz teve que fazer de tudo para sobreviver. Inclusive carregar malas em um hotel de luxo, servindo a cineastas famosos como François Truffaut.

Receoso do serviço militar, em 1964 se mandou pra Europa com uma mochila nas costas e vinte dólares no bolso. Andarilho, sobrevivia graças a trabalhos temporários, como o de figurante em westerns. Decidido a voltar para a América, esbarrou com o problema de não ter servido o exército. Assim, em 1969 desembarcou em São Paulo, onde fixou residência.

Apaixonado por cinema, durante alguns anos Babenco esteve envolvido na produção de documentários, trabalhando com Pedro Carlos Rovai e com o próprio Roberto Farias. Estreou na ficção em 75, com "O Rei da Noite", e em 77 já tinha credenciais para bater na casa de Louzeiro com a proposta sobre "Lúcio Flávio".

O marginal Lúcio Flávio Vilar Lírio, assassinado em 29 de janeiro de 1975, a facadas em uma cela no presídio da Ilha Grande, era àquela altura dos acontecimentos uma espécie de símbolo da bandidagem carioca, mito alimentado pela imprensa, sustentado pela boa articulação verbal do assaltante. Refém do corrupto sistema policial, Lúcio -- como quase todo bandido brasileiro -- no fundo era um coitado, isca de uma organização criminosa formada por gente graúda da polícia, que tomava dele a maior parte dos lucros sem correr qualquer risco.

No filme de Babenco, Lúcio Flávio (Reginaldo Faria) é atormentado pela figura repugnante de Moretti (Paulo César Peréio), uma espécie de disfarce do detetive Mariel Mariscott de Mattos, que, de tão vaidoso, implorou a José Louzeiro para ser retratado com seu nome real.

Toda a história é um gato e rato entre Moretti e Lúcio, mas a composição do submundo é rica e a força dos personagens impressiona. Em "Lúcio Flávio", Babenco não só consolida uma escolha temática -- o olhar aos marginalizados -- que o acompanharia por toda a carreira, mas também rascunha o esforço seguinte, "Pixote, a Lei do Mais Fraco", que lhe abriria as portas do mercado internacional.

O endeusamento de bandidos comuns, prática na época, hoje soa bastante discutível, principalmente por seus desdobramentos nos anos 80 e 90, quando o crime quebrava a espinha do Rio de Janeiro e setores da imprensa e da intelligentsia ainda tratavam bicheiros e traficantes como se fossem personagens da Revista Caras. Por outro lado, nunca devemos cair na esparrela de reduzir o drama ao embate polícia versus ladrão. Nesse ponto, "Lúcio Flávio" é brilhante nas sequências em que Moretti enrola Lúcio, afirmando que "estão do mesmo lado". Conseqüentemente a tomada de consciência de Lúcio chegará através da sentença: "Polícia é polícia, ladrão é ladrão". Esta idéia, embora óbvia, parece tão difícil de ser aplicada no Brasil quanto não jogar lixo nas calçadas ou silêncio depois das 22 horas.

O sucesso de "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" motivou Jece Valadão a produzir uma resposta pró-polícia: "Eu Matei Lúcio Flávio", de 1979. Tentou contratar Louzeiro para seu projeto, mas o escritor não tinha tendências esquizofrênicas suficientes para contrargumentar a si mesmo.

Jece, claro, acabou fazendo melhor, juntando Leopoldo Serran e Antônio Calmon em um exploitation mentiroso, tresloucado e brasileiríssimo de tanta cretinice e farsa. Bancado com dinheiro do jogo do bicho e de amigos de Mariel Mariscott, "Eu Matei Lúcio Flávio" é a obra-prima que o filme de Héctor Babenco tenta, mas não consegue ser.

Chega perto nas seqüências teatrais do bando enfurnado no apartamento de Liece (Ivan de Almeida), amante de Lígia (Lady Francisco). A consciência de que são bucha de um sistema perverso cresce na angústia do esconderijo, no cerco hipócrita dos policiais-bandidos e na ruína financeira em que permanecem, apesar dos roubos.

E o que seduz em Lúcio -- ou pelo menos na construção de Reginaldo Faria -- é que ele tem o raciocínio de um homem comum, distante das elucubrações psicopatas a que se entregam os artífices de crimes. Namora Janice (Ana Maria Magalhães), cria um filho com ela, reclama do trabalho e tem medo. Tanto medo que sofre de pesadelos ao imaginar Janice à mercê da loucura de Moretti.

A razão pela qual uma fábula em que a lei é doente e o bandido humano foi permitida pela censura explica-se por mais um olé inteligente da dupla Louzeiro-Durán: denigre-se a polícia carioca, mas em certo momento surge a "federal", no intuito de consertá-la. Elogiados, os federais não viram razão em caçar a história. A punição dos que "se desviaram da conduta" parece explícita -- e cabe ao espectador preencher lacunas com seu julgamento particular.

Mesmo assim, para desgosto de Louzeiro, a exibição do filme foi interditada na sua cidade natal, São Luís do Maranhão. Como sempre acontece, o Estado atrapalhou o que lhe parecia incômodo com um inferno de exigências e burocracias, disfarçando mera perseguição à liberdade. Ironicamente, proibição em moldes parecidos se repetiria na pré-estréia argentina, dessa vez para a tristeza de Babenco.

Lúcio Flávio, Liece e outros são legítimos arautos da paranóia criminosa que tomou conta do país. Olhá-los, como querem alguns, pertencentes a um contexto "romântico" é tolice. Profissionais do crime matavam, corrompiam, traficavam e assaltavam quase da mesma maneira que hoje. O que mudou não foi só a barbárie, mas a imprensa, a repressão e a sociedade. Analisar este processo como um todo, apontando o papel de cada agente, responderia muitas questões. Só que ninguém dá bola pra cultura, mesmo quando ela pode salvar milhares de vidas.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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