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quinta-feira, 24 de junho de 2010

O CASAMENTO


Falar de Nelson Rodrigues no alvorecer de 2010 me parece difícil, muito por conta da quantidade de estudos, recriações, adaptações e diluições que castigam a obra de Nelson nos últimos anos. A esse fenômeno culpe-se benignamente Ruy Castro, que lançou em 1992 uma biografia definitiva, “O Anjo Pornográfico”, e tirou o autor do limbo em que a intelligentsia brasileira, sempre zelosa do seu index, havia colocado o autor por conta de suas posições políticas conservadoras.

Nelson, no entanto, tem a cretina pecha de “conservador” apenas para aqueles que, como ele mesmo definiria, pastam no terreno baldio e bebem água em cuia de queijo Palmira. Sua filosofia libertária era extrema e extensa, por isso talvez desconfiasse tanto de Freud e Marx, os cânones adorados por seus contemporâneos do século XX. Daí para estes contemporâneos acusarem Nelson de ser aquilo que não era – um anti-intelectual reacionário – foi um pulo.

Por outro lado, se não tinha a simpatia da parcela dita avançada da intelectualidade brasileira, também era odiado pelos legítimos conservadores, que viam na sua escrita uma ameaça aos bons costumes. Em certo momento da vida, Nelson foi portanto um homem artisticamente isolado e para onde quer que olhasse, não o viam com bons olhos.

Esse estado de coisas encontra um ápice em 1966, ano em que, por incrível encomenda do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, escreveu “O Casamento”, um dos melhores romances da literatura nacional de todos os tempos.

“O Casamento” (1975), o filme, dirigido por seu amigo Arnaldo Jabor, é muito bom, mas não consegue ser um décimo do que é o livro, a obra-prima. Talvez porque bons romances não dêem bons filmes, Nelson no cinema funcionou bem apenas na adaptação de suas peças. Logo, para falarmos do filme de Jabor, talvez seja melhor voltarmos nossas atenções para a força da obra literária e o resultado da transposição de uma linguagem para outra.

“O Casamento” versa basicamente sobre a fúria do corpo sufocada pela hipocrisia social e moral. Sabino Uchôa Maranhão (Paulo Porto) é um homem bem-sucedido, que vai casar a filha Glorinha (Adriana Prieto), a quem devota paixão incestuosa. O noivo de Glorinha, por sua vez, é um homossexual enrustido, que beija Zé Honório (André Valli), e é pego em flagrante pelo Doutor Camarinha (Fregolente), ginecologista de Glorinha e pai de Antônio Carlos (Érico Vidal), playboy tresloucado com quem Glorinha perdeu a virgindade. Contando assim, essa ciranda de personagens interligados parece fácil, mas Nelson oferece ao leitor o inferno em vida através do que anda pela cabeça das suas criaturas.

No filme há uma nítida diluição destes pensamentos escusos rodrigueanos. Antes podemos dizer que o universo subjetivo apresentado no livro é tão forte que acaba por ser inadequado ao audiovisual, gerando uma obra de meia-força. Jabor entende Nelson, isso parece visível, mas o romancista Nelson é tão grande que o cineasta Jabor apenas o toca na superfície, sem conseguir aprofundá-lo.

A melhor parte do livro – e do filme – no entanto são coincidentes. Trata-se do dia em que Glorinha perdeu a virgindade. Antônio Carlos guia o seu carro pela praia de Copacabana, passeando com Glorinha e uma amiga dela, as duas hipnotizadas por sua cafajestagem.

Depois de várias ameaças de suicídio teatralizadas, Antônio Carlos arrasta as garotas até a casa de Zé Honório, que pretende ter relações sexuais com outro homem na frente do pai, que o surrava por ser gay. André Valli dá aqui seu show particular no papel do homossexual amargo, com sede de vingança. Mas o que no livro soava apavorante, doentio, no filme transparece apenas como encenação vazia, histérica.

E detalhe interessante: na obra de Nelson, Glorinha e a amiga mantêm relações sexuais uma com a outra por ordem de Antônio Carlos, antes que ele deflore Glorinha. No filme essa parte fundamental da trama é descartada – talvez por conta da censura de 1975. Já a parte onde Sabino avança sobre sua secretária Noêmia (Camila Amado), encontra na dupla de atores uma tensão fantástica, se igualando ao que no livro era respiração suspensa, delírio sadomasoquista.

De todos os personagens transpostos, o mais fraco talvez seja Antônio Carlos, fascinante e dionisíaco na obra literária e vacilante e estereotipado no filme. Ao final, quando Sabino tenta agarrar Glorinha, Noêmia é morta pelo namorado (Nelson Dantas) e, num movimento de espelhamento de culpa, Sabino se entrega como responsável pela morte de Noêmia, temos a nítida sensação de que assistimos a um grande espetáculo. Mas a plenitude e a virtude da história que acabou de ser contada residem ainda no texto de Nelson, a ser lido e relido.

Não à toa sua obra encantou e encanta gente tão díspare quanto o cineasta José Antônio Garcia; o ex-advogado, então cineasta e hoje cronista Arnaldo Jabor (que na dúvida copia na forma o estilo de Nelson para agradar seus leitores); e toda uma nova geração de atores e atrizes teatrais, para quem Nelson é a gigantesca referência estudada em teatro brasileiro. Merecidamente, o antigo reacionário maldito se tornou quase uma unanimidade – o que talvez o desagradasse um bocado.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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