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quinta-feira, 24 de junho de 2010

COM LICENÇA, EU VOU À LUTA


“Com Licença Eu vou à Luta” (1986), filme de Lui Farias, filho do diretor e produtor Roberto Farias, hoje em dia se encaixaria melhor na categoria de thriller do que de drama de costumes.

Em tempos bárbaros, a opressão moral, conjugada com um ambiente paupérrimo e violentíssimo (no caso o município de Nilópolis, na Baixada Fluminense), é a combinação ideal para a criação de uma história que termine invariavelmente em banho de sangue.

Na vida real, no início dos anos 80, o casal Eliane (Fernanda Torres) e Otávio (Carlos Augusto Strazzer) em vez de matarem, de se desesperarem, procuram pacificamente um juiz de família e pedem permissão para o namoro, já que a menina tinha apenas quinze anos e o rapaz trinta e três.

O filme é baseado na autobiografia best-seller “Com licença eu vou a luta – é ilegal ser menor?” de Eliane Maciel, a menina em questão, que massacrada por pais neuróticos, encontra no amor do adulto Otávio sua redenção particular. Loucos não são só aqueles que rasgam dinheiro, uma tia velha me dizia, e parodiando sua máxima podemos complementar: a loucura por vezes mora escondida nos lares mais comuns.

A casinha proletária de Eliane, onde o pai sargento (Reginaldo Farias) e a mãe dona de casa (Marieta Severo) cuidam do futuro da moça e do irmão mais novo, era digna de foto na Enciclopédia Brasileira Ilustrada. No entanto, por trás da fachada de pobreza honrada, há uma bomba prestes a explodir.

Dona Eunice, a mãe, vive para tramar o aniquilamento existencial da filha. Qualquer coisa que Eliane faça, ou diga, é tal como em uma novela de Kafka, sempre usada contra ela. A vontade da menina não importa, não vinga; o que vale é o narcisismo da mãe e seus mesquinhos desdobramentos. Para que Dona Eunice seja feliz, é preciso que Eliane escravize sua vontade a dela. Sem a atração-destruição da jovem Eliane, dizem os estudos da psicanálise sobre o assunto, personalidades como a de Eunice não são capazes de se sustentar de pé, sozinhas.

Resta a vítima proteger-se de sua algoz. Caminhando pelas ruas da conturbada Nilópolis, cidade-dormitório do Grande Rio, que ostenta desde os anos 70 uma das maiores taxas de homicídio do país, Eliane conhece Otávio, técnico da polícia, divorciado com dois filhos, que mora com a mãe.

Aparentemente Otávio é um loser, mas oculto em sua momentânea derrota pessoal está o coração de um homem generoso, prestes a se reinventar. Adepto de alimentação macrobiótica, leitor compulsivo, o trintão Otávio encontra na púbere Eliane o direito divino do recomeço.

Mas entre eles se coloca Dona Eunice. Jogando com todas as armas que possui (todas elas, invariavelmente, prejudiciais apenas à filha), Dona Eunice manipula o marido doente e a avó apaziguadora contra os planos do casal. Humilha Otávio, invade seu emprego, sua casa e dá o vaticínio “minha filha, este homem é horroroso, parece um macaco”. É interessante ver Strazzer (falecido de Aids em 1993), na vida real um ser humano sensível como o personagem, jogado na fogueira desta forma. Notem que, por instantes, seu olhar o trai diante das câmeras.

Ao casal nada mais restará do que um embasamento legal para seu amor. Procuram um juiz (Paulo Porto), que concede o direito de se verem. A mãe novamente expõe sua crueldade: “mas minha filha, ele vai enjoar de você muito rápido”. Em vez do desprezo de Otávio, Eliane colhe a traição da família, que a leva embora para outra cidade apenas para que fique longe do amante. O desfecho da trama não é para ser contado.

Produção da R. F. Farias, este é um daqueles produtos típicos que surgem “no lugar certo e na hora certa”. Ao processo de redemocratização do Brasil tudo podia somar-se, e a liberdade -- embora a censura ainda se manifestasse na proibição de filmes -- parecia ser a palavra de ordem (Je Vous Salue Marie de Godard foi o caso mais típico; dias depois do Ministro da Justiça declarar que “estava extinta a censura no Brasil”, como bom brasileiro, voltou atrás).

A discussão sobre a menor idade caiu como uma luva, enriquecendo a autora do livro e levando razoável público ao cinema, na dobradinha "literatura de consumo/cinema de qualidade", que no Brasil sempre produz resultados interessantes.

Corajosa, sincera, coerente em seu amor, Eliane é um arquétipo moral de personalidade, a ser melhor explorado nas artes. Aqueles que massacrados pelo ambiente familiar doentio, pela pobreza e pela falta de perspectivas, contrariam seus destinos, se forjam ainda mais fortes e vão à luta pelo que é mais grato ao ser humano: o direito de viver em paz consigo mesmo, acreditando apenas em seus mais íntimos valores.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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