Powered By Blogger

quinta-feira, 24 de junho de 2010

SONINHA TODA PURA


Baseado na peça "Do Sótão ao Rés-do-Chão", autoria de Ilclemar Nunes, "Soninha Toda Pura" (1971) engana pelo título. Em plena onda das comédias eróticas -- gênese da pornochanchada -- bem provável que se tenha vendido o drama pessimista como tentação lollipop. Produção esmerada de Jarbas Barbosa -- irmão do Chacrinha -- direção do talentoso Aurélio Teixeira, "Soninha Toda Pura" foi obra à frente do seu tempo, discutindo lesbianismo, estupro e infidelidade de maneira adulta, muito além daquilo que o provincianismo brasileiro moralista seria capaz de digerir e aceitar.

Pois quem pagou ingresso esperando ver o casalzinho Adriana Prieto e Carlo Mossy vivendo desventuras românticas, se surpreendeu com influências de Eric Rohmer e Walter Hugo Khouri. O ponto de partida é uma esposa infiel, Malena (Zélia Hoffman), que viaja com o amante, Betinho (Mossy), a filha Soninha (Adriana Prieto) e uma amiga, Nanan (Elsa de Castro) para temporada em uma praia de Cabo Frio. Se o resumo lembra bastante o imaginário khouriano, closes em rostos femininos e jazz na vitrolinha que as meninas levam de um lado para o outro convencerão definitivamente o espectador de que Aurélio Teixeira era fã do maior diretor brasileiro.

Na casa, cercados de areia e mar por todos os lados, fica claro que Nanan deseja ardentemente a amiga Soninha. Lindíssima, Elsa de Castro fez o dever de casa, e tem a presença de uma atriz da Nouvelle Vague. Sua liberdade, avassaladora e contida, encontra na ingênua Soninha fuga e atração. O ritual de côrte homossexual eleva-se nos beijos roubados e na conversa sobre teatro, o que torna o filme prato cheio para ataques ignorantes, daqueles que só aceitam cinema brasileiro se tiver quatro patas.

Galanteada pela outra, Soninha nem percebe que sua mãe é amante de Betinho, garotão ressentido da mulher velha e sonhando com a pureza das moças. Três idéias -- o flerte em diversas combinações, a sedução de Nanan e a humilhação de Malena por Betinho, montam um final rancoroso e surpreendente. Percebam que somente em um momento, logo nas primeiras cenas, outro personagem, além dos quatro, é mostrado: o pai de Soninha, vivido pelo próprio Aurélio Teixeira.

Dublado por Mário Petraglia, Carlo Mossy teria rendido melhor com a voz original. Os arroubos machistas, a angústia travestida de impaciência, eram um prato cheio para o ator brilhar sua especialidade: o cafajeste humanizado e perdedor, iniciado em "Copacabana Me Engana" (1968), revisto em "A Penúltima Donzela" (1969), diluído em "Lua de Mel e Amendoim" (1971).

A verdade é que Mossy, Prieto e Hoffman navegam pelo desbunde de interpretação da paulista de Garça, Elsa de Castro. Poucos anos depois, apresentada por Mossy ao policial-bandido Mariel Mariscott de Mattos, Elsa teria uma filha e abandonaria a carreira. Zélia Hoffman também se afastou dos filmes e da tv naquela década, morando no Retiro dos Artistas até morrer, em 2007. Já o diretor-ator Aurélio Teixeira faleceu em 73, deixando este como último longa-metragem, indício do que poderia ter feito na maturidade artística.

Complementando a trilha-sonora do Maestro Erlon Chaves, os adoráveis discos de jazz que os protagonistas ouvem forçam um pouco a barra, já que adolescentes dificilmente apreciariam Louis Amstrong nos momentos de lazer. A repentina proposta de Betinho para um ménage-à-trois com mãe e filha é outro curso improvável, deslize vazio no roteiro, pois não se explora qualquer ligação entre Malena e Soninha. Com a mãe limitada a proteger a menina, tudo que envolve ambas parece artificioso, sem consistência.

Nunca lançado em Vhs, que maravilha "Soninha Toda Pura" um dia voltando ao cinema ou mesmo exibido no Canal Brasil. Incômodo, mal compreendido e esquecido, o filme revelará que a presença do homossexual nas telas brasileiras pode ser bem mais complexa do que imaginamos. Tomado pela delicadeza, Aurélio Teixeira eternizou belas cenas de amor entre iguais, ao mesmo tempo que conduziu o drama teatral com elegância de grande cineasta.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

Nenhum comentário: