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quinta-feira, 24 de junho de 2010

CONVITE AO PRAZER


A melhor maneira para revermos “Convite ao Prazer” (1980) parece ser o esquecimento de que o filme teve a assinatura de Walter Hugo Khouri. Analisado diante do legado autoral do diretor é obra menor, quase um comentário a “Noite Vazia”, dezesseis anos antes. Mas se olhado apenas como aquilo que de fato foi, um curto drama de costumes, produzido dentro dos esquemas da Boca do Lixo, “Convite ao Prazer” cresce e se parece muito com uma daquelas obras-primas que os cineastas da Boca deixaram para serem descobertas pelo mundo, antes que mofem nas Cinematecas.

Esqueça, portanto, que o Marcelo é o mesmo de “Eros”, que o apartamento também é quase no mesmo endereço, e que o embate Luciano-Marcelo é similar ao de Luisinho-Nelson em “Noite Vazia”.

Nos concentremos nas primeiras cenas, quando o dentista Luciano (Serafim Gonzalez) mostra-se entusiasmado ao colocar uma jovem garota de programa na sua cadeira de trabalho. Quando queria, Khouri sabia ser pateticamente machista e a garota (Aldine Müller) nada mais é do que um adereço. Não fala, não tem vontades, nem guarda em si a força a que Marcelo costumava querer dominar e se misturar sem sucesso. No fato da garota explicitamente não-ser, reside o impacto inicial da história.

Não-sendo, ela serve a Luciano como uma bonequinha viva, até que alguém chega de surpresa: Marcelo (Roberto Maya) resolve visitar o amigo e o surpreende como uma criança surpreende outra comendo um doce. A alusão homossexual é fácil: Marcelo é o macho mais forte e Luciano cede ao amigo sua conquista. A menina continua a servir, passiva.

Marcelo e Luciano têm um pacto, repartido de forma silenciosa por décadas. Uma destas amizades masculinas, difusas, que normalmente só se sustentam pelo óbvio interesse homossexual latente entre uma (ou as duas) partes. Luciano inveja em Marcelo seu dinheiro, seu poder, suas conquistas. Marcelo gosta de se ver mais bonito refletido na admiração de Luciano. As mulheres são desnecessárias no conluio: os dois, apaixonadamente, se completam e se amam.

Rememoram festas, histórias do passado, dissertam de tudo um pouco. Marcelo, o pavão, convida o amigo para uma nova rodada de voyeurismo explícito, dessa vez no edifício em que mantém uma garçonniére. Há toda uma lenda envolvendo a famigerada garçonniére, contada de forma mais atraente um ano depois, em “Eros”. Mas aqui sutilezas não importam tanto. O apartamento guarda móveis de Laka e o jazz na vitrola faz alusão ao passado nostálgico dos velhos lobos. Marcelo contratou algumas prostitutas. Em horários alternados elas chegam e servem, servem sempre.

Trocando olhares furtivos e sexo em posições de Kama Sutra (excepcionalmente filmadas pelo gênio que, afinal, se escondia na direção e operação da câmera), a vida é passada em sua plenitude e gozo. Como o loft possui um mezanino, a ação ocorre em dois ambientes. Os casais se alternam e a composição dos quadros é primorosa, podendo ser assistida mil vezes sem parecer tediosa ou enjoativa.

Marcelo tem uma esposa, a inevitável Ana (Sandra Bréa, no auge da beleza), com quem disputa o título de mais infeliz e neurótico. A relação dos dois é apenas formal. Por outro lado, a esposa de Luciano, Anita (Helena Ramos), dá uma de detetive particular e caça o marido por São Paulo inteira. Quando encontra provas suficientes de que ele sublimou a paz conjugal no apartamento do melhor amigo, arma uma cilada. E, entre um bacanal e outro, Marcelo e Luciano brigam, para Ana acabar vitoriosa. Mesmo porque, ainda sendo este atípico, nos filmes de Khouri a anima sempre vence.

A narrativa é boba, fraca, deixando um quê de inutilidade. No entanto, como em toda obra menor de um talento maior, os defeitos e pontas soltas fazem com que questões autorais escondidas tornem-se melhor estudadas.

Em nenhum outro filme, Khouri sugeriu tanto a homossexualidade latente de seus protagonistas masculinos quanto aqui. Fica quase claro que Luciano e Marcelo se desejam. Por outro lado, também fica entregue o quanto Marcelo é uma projeção do super-homem brasileiro e paulistano, na fantasia de poder, carisma e indiferença, que como em um grupo de predadores divide a classe masculina entre os que vencem muito e os que vencendo pouco, se sentem derrotados e excluídos.

Também é notável a ambientação, a colocação dos cenários, como um filme-ensaio para “Eros” ou “Eu”. Compreendido mais como diversão do que reflexão, apreciadas as belas plásticas femininas e decorativas, anotando-se as peculiaridades de cada uma das festas, atrizes no auge (Patrícia Scalvi, Nicole Puzzi, Kate Lyra, para citar só as melhores) e transas que se sucedem, “Convite ao Prazer” vira diversão inofensiva e fácil, conquistando o mais renitente dos espectadores para os quintais do universo khouriano.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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