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quinta-feira, 24 de junho de 2010

GISELLE


Se “Cassy Jones” supostamente inaugurou o gênero da pornochanchada no Brasil, pode-se dizer que foi necessária quase uma década até que o estilo alcançasse seu apogeu e criasse a obra máxima. Tal como os russos precisaram de dez séculos de história para ver surgir um Dostoieviski, um Tolstoi, a grande década que a pornochanchada atravessou nos anos 70 culminou, em 1980, com o lançamento em centenas de cinemas no Brasil e no mundo de “Giselle”.

“Giselle” é um filme impressionante, em todos os sentidos. Merece um livro para estudá-lo, por suas múltiplas e ricas leituras. Cinema trash, panfleto libertário, carnaval do absurdo. Não há rótulo possível para a obra e quem consegue rotulá-la é porque não a compreende em sua totalidade. Vou optar pela via mais difícil de entendimento, que é a análise psicanalítica dos personagens. Colocar “Giselle” no divã talvez seja uma alternativa viável para seu tom de Pirandello.

Uma produção da Vidya (mais uma), direção de Victor di Mello, estrelada por ele, nosso homem nos anos 70, Carlo Mossy. A seleção da trilha sonora inacreditável também é de Mossy, com sucessos dos anos 60 interpretados por uma orquestra que lembra a famigerada “101 Strings”. Co-estrelando Maria Lúcia Dahl, Ricardo Faria, Nildo Parente e Alba Valéria; esta última é a personagem título e leitmotiv da trama.

Giselle é filha de Luchinni (Nildo Parente) e tem Haydeé (Dahl) de madrasta. Quando volta da Europa para o sítio do pai, encontra na madrasta não uma mãe, mas uma amante insaciável. Haydeé é apresentada como uma destas mulheres com TPN (Transtorno de Personalidade Narcísica), que encontra na jovem enteada seu refúgio para uma relação voraz, que amorteça sua frustração por estar envelhecendo. Giselle não se nega a ser o espelho de Haydeé; é uma quase adolescente amoral, que por trás de sua extrema felicidade e ingenuidade esconde um comportamento parasitário e perverso.

Notem que não haveria Giselle sem o pai, Luchinni. É ele que a sustenta, que a mantém em seu mundo hedonista. Haydeé, a esposa, também o parasita, e Luchinni é passivo a tudo porque também esconde um segredo. Enquanto Haydeé e Giselle transam no quarto ao lado, Luchinni trata a todos com bondade, tolerância e aspecto cordato. Antes de Haydeé, no entanto, Giselle também estava envolvida sexualmente com o capataz do sítio, Ângelo (Mossy). Com o planejamento das duas, Ângelo é trazido da “senzala” para dentro da casa grande, e os três formam um daqueles trisais típicos de quem vê a vida com bons olhos.

Ângelo esconde, por trás da sua aparência de capataz fiel, uma personalidade bombástica, pronta a explodir. É bissexual, libertário, ama Giselle e Haydeé como se daquilo dependesse sua vida (e dependia). Quando o filho de Haydeé, Serginho (Ricardo Faria), chega do Rio, o teatro se completa. Ângelo domina a tudo e a todos com sua masculinidade insinuante e decreta aos discípulos embevecidos uma ditadura falocêntrica.

Em suma, Ângelo transa com Serginho, Haydeé e Giselle. Os três o adoram e ele responde esta adoração com proteção. Quando marginais tentam bater em Serginho, uma briga tem início e Ângelo quase morre para defender o amigo. No fim das contas os quatro são estuprados pelos marginais, em uma das cenas mais absurdas e grotescas do cinema mundial.

Por outro lado, Giselle é uma daquelas personalidades que tem o poder de transformar com seus atos a vida das outras pessoas. A madrasta Haydeé é quase sua escrava. Serginho tem uma relação simbiótica com ela, com quem compartilha seus desejos. Ângelo, por sua vez, respeita Giselle como uma igual e os dois transitam por todos os universos, cientes de seu domínio sobre os outros.

O que chama muita atenção no filme, mais do que um enredo tão rocambolesco quanto envolvente, é a pretensão libertária que involuntariamente adquire aos poucos, mesmo que por trás de um alerta conservador nas primeiras cenas (respirem fundo): “Assim como na antiga civilização romana, como em Sodoma e Gomorra, todas as vezes que uma sociedade está em decadência, a principal característica, é a falta de valores morais, a promiscuidade sexual, o desamor, as frustrações, e os desencontros. Os dias que hoje estamos vivendo, não diferem muito daqueles que antecederam a destruição daquelas sociedades”.

Este blábláblá meio “O Homem do Sapato Branco” (lembram disso?) é esquecido ao longo da história, demonstrando a obviedade de que o texto moralista foi plantado ali apenas para agradar aos velhinhos censores. Victor di Mello, Mossy e todos que atuaram, na verdade simpatizavam era com a liberdade sexual e, no seu estilo pitoresco, trabalharam em uma ode a ela.

A trilha-sonora repete insistentemente “San Francisco”, o hino hippie da geração flower-power. É necessário que se escreva um “Afinal, quem faz os filmes” brasileiro, parodiando a obra clássica de Peter Bogdanovich, para que entendamos melhor o que se passava pela cabeça dos intrépidos cineastas e suas inspirações duvidosas. À primeira vista, fica a pergunta: “San Francisco” durante longas cenas foi uma maneira “sutil” de evocar outra época recente, mais libertária? E por que quando Mossy e Giselle estão em plenos trabalhos na cachoeira, escutamos ao fundo o clássico dos Beatles, “Let it be”?

Acentuando o aspecto libertário, temos além das cenas de bacanal, outras em que o consumo de maconha é farto. Giselle, Ângelo e Serginho em certo momento partem para o fight com Zózimo Bulbul, o negro-fetiche das mulheres e dos homens brasileiros dos anos 70. Bulbul se deixa chicotear pelos três, pede mais, Mossy fumando um baseado entra em êxtase e em seu complexo de onipotência dá uma surra em todos. “Bate machão, bate!” – Serginho pede, e a gente se pergunta por que é a Conspiração Filmes, não a Vidya, quem manda no cinema brasileiro hoje em dia.

O filme termina com a separação, a dissolução daquele arranjo sexual fabuloso. Haydeé, a narcísica, abandona o marido e vira traficante de drogas. Serginho dá vazão ao seu homossexualismo e vira uma vedete carnavalesca. Ângelo e Giselle se entregam à realização plena de suas personalidades, mas Ângelo parece ter apanhado uma doença sexual, em cena final duvidosa.

Resta Luchinni, que abandonado por todos e pego em flagrante de pedofilia (sim, até isso conseguiram encaixar, ele lê uma revistinha com o título de “O amiguinho do Rei”), assume sua condição de provedor dos parasitas e sustenta a felicidade (?) de todos. Se me contassem que “Giselle” existe, eu duvidaria. Mas foi filmado no Rio de Janeiro em meados de 1979. E, segundo os responsáveis, vendido para quase trinta países. Há muito mais a ser dito, e tal como uma manchete do Notícias Populares, ninguém perde por esperar.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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