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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Joelma, 23o. Andar


Filmes como “Love Letters of a Portuguese Nun” de Jess Franco, ou o mexicano “Alucarda”, celebram um estranho gênero cinematográfico: o nun-exploitation, a discutível tentativa de se ganhar dinheiro no cinema com filmes de temas supostamente “religiosos” (no caso dos nuns, a esquematização gira quase sempre em volta da vida secreta nos conventos, repleta de sexo, drogas e no lugar do rock and roll, religião). Outros filmes como “Stigmata”, do final dos anos 90, também trazem o filão da religião à tona, de forma explorativa e polêmica, convertendo em fé aquilo que deveria ser apenas entretenimento.

Mas só no Brasil (ah, o Brasil...!) se criou um gênero exploitation único, original, envolvendo temas religiosos cristãos: o espiritismo exploitation. Maior país espírita kardecista do mundo, o cinema brasileiro pode e deve encontrar no kardecismo temas e variantes sensacionais. É o caso de “Joelma, 23o,. andar” (1979), adaptado por Dulce Santucci a partir de um livro psicografado por Chico Xavier. Narra-se, do além, a desencarnação de vítimas na tragédia do Edifício Joelma, São Paulo, ocorrida em 1o. de fevereiro de 1974.

“Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência”. Contradição em termos, desprezem este aviso porque se fosse desta forma, qual a graça de se rodar e divulgar um filme sobre o evento ressaltando-se a presença de Chico? Vamos ao que de fato interessa.

O incêndio do Joelma entrou para a história – assim como o do Edifício Andraus e o do Andorinha. 184 morreram. As imagens da época não deixam mentir sobre o estardalhaço geral. Milhares de transeuntes acochambrados no viaduto da Praça da Bandeira, ou pela televisão, acompanhavam o drama como se numa mistura de pão e circo, aderindo ao voyeurismo tétrico que sempre se vê em ocasiões do gênero. Resumindo: público havia para “Joelma”, dinheiro foi levantado e o roteiro seguiu um cerimonial kardecista para contar o depoimento de Lucimar (Beth Goulart, aos 15 anos), universitária que trabalhava no vigésimo terceiro andar do prédio.

Os computadores jurássicos, de uns 500 quilos, ocupando paredes inteiras no setor de Lucimar, acentuam o acabamento cuidadoso da produção – até o fogo não é de brinquedo e recria com veracidade os momentos de tensão mais claustrofóbica. Jesse James Costa – assistente na produção – encarna um sobrevivente que escalou as paredes externas do Joelma, andar por andar. Sim, isto aconteceu na vida real, por mais absurdo que pareça.

Quanto a detalhes técnicos do conjunto, percebe-se no branco e preto uma escolha acertada para costurar o tom sério da religião com o estilo documentarista de antigos programas como “Globo Repórter” e “Amaral Neto”. Passo a passo, a história de Lucimar é desvendada.

Menina doce, que “pressentia a brevidade da vida” e auxiliava os próximos, esquecendo de si mesma. Não namorava, só estudava e trabalhava, boa filha, irmã, amiga. Do tipo que come empadinhas feitas pela mãe e vibra quando saem para fazer compras juntas.

Tem visões, sonhos, e em um deles sente labaredas enormes – maiores do que as que quase avançam sobre ela, ao ligar um simples fogão. Espiritualizada, quando passa em frente a livros de Chico Xavier inicia um transe no qual, assustadísimos, vemos o rosto congelado de Chico, produto da montagem pra lá de espectral.

A direção de Clery Cunha – atuou no adolescente “A Virgem” (1973), ao lado de Kadu Moliterno e Nadia Lippi – faz pouco para atenuar a verdade maior de “Joelma”: o culto à personalidade de Xavier, um profeta emblemático para dar sentido à catequese do filme. Ouvimos lições de esperança para aqueles que ficaram na Terra e choram os entes queridos. Provavelmente aumentou a romaria à cidade de Uberaba, onde o médium dava consultas, distribuía comida aos pobres e fazias preleções à sombra de uma árvore.

Inegável que os arquétipos convencionais esgotam a paciência de quem quiser ser um pouco mais cético. Estão no filme todos os clichês possíveis, semelhantes às dos folhetins-padrão. Vejamos: a menina pura, a mãe sofredora, o irmão boa-praça, o comerciante gordo, rico e prepotente que fuma charutos, a valorização do trabalho árduo acima do prazer e do dinheiro.

É preciso juntarmos, porém, dois fatores de “Joelma” para refletirmos sobre a sua originalidade. Primeiro: o filme é realmente primitivo ao falar sobre bondade como um atributo estanque. Lucimar é boa, mas tão boa que dói, e só alguns conseguiriam ser fora das câmeras ou dos livros da “Biblioteca das Moças”. Segundo fator – e este sim a ser lembrado –: o filme sai fortalecido de uma análise mais cuidadosa.

“Joelma, 23o. andar” capricha nos tons bombásticos, na falta de tato, vai direto ao caos. Devemos nos aproximar dele com lupas de aumento, deixando ainda mais claro o quanto a linguagem é pitoresca. Apesar de não ser entronizado nos cânones mais “respeitáveis”, faz vibrar a sensibilidade dos pesquisadores e cinéfilos de plantão, conseguindo resultados surpreendentes, que marcam um impacto que nem todo blockbuster – carregado das campanhas midiáticas – consegue atingir. É um autêntico produto da singularidade nacional.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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