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quinta-feira, 24 de junho de 2010

CIO, UMA VERDADEIRA HISTÓRIA DE AMOR


Se o leitor acha que já viu de tudo em cinema brasileiro, precisa assistir a "Cio - Uma Verdadeira História de Amor" (1971), dirigido por Fauzi Mansur. História polemicíssima, que dificilmente seria refilmada nos dias de hoje: a paixão do homem trintão e bem de vida, Paulo (Francisco di Franco), por um jovem engraxante de 14 anos, Darci, nordestino perdido nas ruas de São Paulo.

Tudo começa com Paulo fotografando um caminhão, cheio de migrantes, onde fixa a imagem do menino. Depois, encontram-se ao acaso, conversam; Darci engraxa sapatos em uma praça e Paulo torna-se freguês. O envolvimento aumenta quando Paulo aceita assinar um documento, responsabilizando-se pelo menor. A partir daí, será um homem apaixonado, perdido diante da figura ambígua e doce do rapaz.

Na analogia da paixão homossexual muda, devota, naquele mesmo ano Visconti realizou sua adaptação de Thomas Mann, "Morte a Venezia". Mas "Cio" nada tem de cópia ou pastiche: o roteiro -- de Luiz Castellini, Fauzi e Salatiel Coelho -- finge que encaminha-se para um happy end sensacionalista, escandaloso. Bem diferente da passividade embevecida (e auto-destrutiva) de Gustav Von Aschenbach, na observação distante ao mancebo Tadzio.

Finge tanto que logo alimentamos a expectativa de erotismo amoral, entre o adulto maduro e o menino inexperiente. Evidências não faltam. Darci narra a lide no sertão: o pai (Jofre Soares), mutilado pelo corte da carnaúba, foi traído antes de morrer pela mãe. E Paulo, hipnotizado pelo sofrimento do rapaz, aos poucos abandona sua vida passada, inclusive o noivado com uma quatrocentona (Márcia Maria), em troca da companhia e da dependência melancólica de Darci.

O mal-estar avança entre flashbacks, trilha-sonora fantasmagórica e montagem competentíssima. Darci foge, Paulo o procura pela cidade -- é o retrato do ser patético, desesperado. No último momento, o rumo das coisas muda: e, quando Darci revela-se uma mocinha (Vera Lima) -- espécie de Diadorim de Guimarães Rosa, traumatizada pela repressão familiar -- a relação finalmente ganha um sentido, onde antes havia culpa e estranheza.

Sobre a maravilhosa cena final -- congelada, no ápice da nudez de Darci, à moda de tantos filmes brasileiros da época -- muitas coisas merecem ser notadas. A melhor, imaginarmos a reação dos moralistas de plantão, no pior período da ditadura militar -- novembro de 1971 -- durante os delírios do ator Francisco di Franco -- galã viril, felpudo, machão -- beijando um (suposto) menininho esquálido e frágil. Nessa hora, a redenção heterossexual vence sem grandes delicadezas (reparem o coqueiro fálico atrás do casal, durante a nudez). Transparecesse mais sutil ou dúbio, o caso morreria na Censura.

A bela mensagem que "Cio" pretende deixar é que paixões não guardam limites e destroem aquilo que as impeça. Cláudio Portioli, ótimo diretor de fotografia, cria uma atmosfera idílica, mas o filme torna-se ainda melhor pelo estilo, ao mesmo tempo pungente e popularesco, que Fauzi Mansur utiliza sem medo, gerando uma espécie de poema insólito, simplório na forma e profundo na liberdade do conteúdo.

Fauzi, um dos cineastas mais férteis do cinema paulistano, teve seu nome envolvido em mais de oitenta títulos. Quase impossível atingir sempre o resultado que inaugurava aqui, na fase virtuosa de sua carreira, entre 1971 e 1977. Logo embarcaria na pantomima do sexo explícito, assinando principalmente como Victor Triunfo (homenageando as ruas do lugar, Victória e Triunfo), e também como Izuaf Rusnam -- talvez inspirado no Oaxiac Odéz, de Zé do Caixão -- seu nome de trás pra frente.

Gênio contraditório, naïf e sofisticado ao mesmo tempo, Fauzi Mansur soube como poucos entender o caráter industrial do cinema, e construir uma infinita obra vendável, que lhe rendeu público e fortuna. De quebra, fez autoria cuidadosa -- auxiliado pelo talento de colegas como Portioli, Castellini, Ozualdo Candeias e Antônio Meliande -- a ser estudada como paradigma, meio possível para um cinema popular de qualidade.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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