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quinta-feira, 24 de junho de 2010

TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA


Se vivo estivesse, Nelson Rodrigues diria que para Arnaldo Jabor não existe acontecimento banal. Tudo encontra em seus comentários significado transcendente. Ciclone nos Eua, por exemplo, é fruto das transformações da era Bush. Atropelamento em Brasília? Culpa de Lula, cujas origens sindicalistas, blá, blá, blá. O cotidiano no Rio de Janeiro arranca do cronista lamentos de auto-comiseração, vaticínios sinistros, esgares de ópera bufa.

Ironizo com um sorriso no rosto, pois guardo simpatia pelos truões radicais -- de qualquer espectro político e motivação ideológica. São eles que dão gosto à vida. Quem defende mundo de discretos consensos, de preceitos imaculados, ou flerta com a mediocridade, ou já namora com o totalitarismo. A beleza da existência, o êxtase da finitude humana, definitivamente estão no quebra-pau. E se tal quebra-pau envolver um, dois ou mais clowns sedutores e histriônicos, melhor ainda.

Não seria lindo se, em 2010, ainda tivéssemos Glauber Rocha entre nós? Imaginem ele e Jabor sentados em um estúdio, ao vivo, sob patrocínio dos Sabonetes Coxotó, batendo boca. Quantas ilações maravilhosas, quantos diagnósticos tonitruantes, quantas canastrices?

Daqui há vinte anos lembraríamos, saudosos, o que ouvimos e não ouvimos. Sim, porque momentos como esses provocam nos espectadores uma furibunda criatividade. Diante do opinólogo compulsivo, do falastrão panorâmico, o ouvinte é quase um rei. Ganha direito divino de imaginar e propagar qualquer coisa.

Vejamos Nelson Rodrigues -- sempre ele: escrevia odes libertárias, chamava a constituição de "prostituição", mas foi tachado por seus pares de "reacionário". E Nelson amava o xingamento, sabendo que justamente esse contraditório tornava-o personalidade curiosa. No futuro distante -- hoje -- muitos se debruçam na esperança de "desvendá-lo", e assim o eternizam.

Sobrevivente dos anos 60 e 70, Jabor teve todo tempo para observar Nelson. Busca imitar sua verve, acrescentando pitadas de lembranças da UNE e o olhar azul de menino (nascido em 1940, 70 anos) bonito. E assim grita, grita alto. Se descabela. Gera o contraditório do cineasta carioca, ex-esquerda festiva, propagando ideais da classe-média paulistana. Falta um baiano -- Glauber? -- para afrontá-lo, ou até mesmo calar sua boca. Sinto necessidade de outro radical, parlapatão dionisíaco, que consiga equilibrá-lo.

Aí o leitor pergunta: as custas de quê tamanha introdução? Para voltarmos a 1973, quando aos 32 anos o moço Jabor resolveu adaptar para a tela grande uma peça do seu ídolo Nelson, "Toda Nudez Será Castigada". Vinha de uma provocação excelente -- "Opinião Pública" (1967) -- e uma alegoria cinemanovista obscura -- "Pindorama" (1970), depois de fazer parte do Centro Popular de Cultura, colaborar em jornaizinhos revolucionários e estudar Direito na burguesa PUC.

Em 1963, participou ainda da equipe de “Ganga Zumba”, longa de Cacá Diegues, além de dirigir o curta-metragem “O Circo” (1965). Nos idos da década de 70, após o fracasso de “Pindorama”, realiza sua primeira transição: da parafernália sociológica do Cinema Novo para o melodrama rasgado, sem medo do ridículo, protagonizado por Darlene Glória e Paulo Porto em “Toda Nudez”.

“Herculano, quem te fala é uma morta!”, ouvindo o apelo de Geni (Darlene), o macambúzio Herculano (Porto), relembra sua travessia pelo inferno feminino. Vivendo em uma casa cheia de tias conspiradoras, pai do esquisito Serginho (que tem o hábito de cheirar os fundilhos das calças alheias), o homem tem aquele norte moral dos personagens rodrigueanos. Semelhante a Sabino, de “O Casamento”, Herculano nem é ruim: apenas guarda tantos esqueletos no armário que a peça, o filme, viram expiação desses problemas, antes de narrativa sóbria.

E Jabor foi extremamente feliz em perceber que, de sobriedade, o texto de Nelson não tinha nada: cai de boca na interpretação possuída de Darlene Glória e no ar compungido do excepcional Paulo Porto. Ela, a prostituta que temia o câncer no seio, dá um baile nele, o viúvo que prometeu sua castidade em troca do platônico amor homossexual do filho.

A mãe morta – que Geni substituirá incestuosamente – guia toda a decadência da família. E se o universo rodrigueano é basicamente composto de famílias decadentes, essa aqui tem na obsessão pela morta seu único elemento agregador. O governo da esposa falecida é outro mote repetido -- desde o folhetim “Meu Destino É Pecar”, que Nelson assinou em 1944 com o pseudônimo de Suzana Flag.

Acompanhando de perto a recriação da peça, Nelson foi tomado de um entusiasmo retumbante. Em 27 de novembro de 1972 escreveria em suas célebres confissões: “(...) Sua direção é magistral. Excelente Jabor, com seu clima de último romântico. Sempre que o encontro, digo-lhe: '--Não seja tão inteligente'”.

Na mesma confissão, Nelson conta que elaborou “Toda Nudez” em um domingo, ao ouvir a conversa de duas vizinhas. Uma relatava para a outra o suicídio de Marilyn Monroe. E Nelson tinha, pelo suicídio, a mesma paixão que eu tenho pelos bufos radicais e pelas idéias cálidas: achava que Deus prefere os suicidas.

Em associação que só a mente de um lúdico poderia engatar, concluiu que a morte de Marilyn guardava semelhanças com a famosa pose despida na folhinha da Playboy, em dezembro de 1953. Morrendo igualmente nua, a atriz morreu folhinha. E sua nudez foi uma espécie de predestinação trágica.

Produzido pelo ator principal, Paulo Porto, “Toda Nudez” conquistou espaço inovador nas bilheterias: um filme comercial, baseado em autor popular e realizado por um diretor que na época andava -- conseqüência de “Pindorama” -- acusado dos piores ranços da egotrip cinemanovista.

Salas cheias, aplausos durante a exibição, devem ter mudado a cabeça de Jabor sobre o que fazer dali pra frente. Pelo menos até que o famoso general Antônio Bandeira decidisse proibir um lote de filmes já em cartaz, inclusive o badalado “Toda Nudez”.

Acontece que o filme tinha sido levado ao Festival de Berlim, o que gerou situação espúria: proibido em território nacional, representou o Brasil e ganhou o Urso de Prata em um festival importante. A proibição acabou revogada e o público teve acesso ao trabalho, que àquela altura ganhava quase status de unanimidade.

Criticado por tantos no século XXI, Arnaldo Jabor pode relaxar: se a paixão e o excesso não o fizerem um clássico do pensamento brasileiro, o cinema já fez. Dono de inteligência descomunal e talento idem, quando toda a contingência política baixar, quando as demandas ocasionais não fizerem mais nenhum sentido, enxergaremos o gênio por trás da máscara. Tal fenômeno aconteceu com Nelson Rodrigues. Com Glauber Rocha. E, com certeza, a história absolverá também Jabor.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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