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quinta-feira, 24 de junho de 2010

MULHER MULHER


Apesar do estrondoso sucesso -- 2 milhões de espectadores em 1979 -- podemos dizer que "Mulher, Mulher" é de longe o título mais fraco de Jean Garrett, na fase virtuosa que sua carreira viveu até 1982. Mas, em se tratando de Garrett, quase tudo deve ser atentamente observado e reavaliado. Mesmo porque, em qualquer retrospectiva de sua obra, "Mulher, Mulher" surgirá como paradigma -- melhor dizendo, estigma -- e alvo fácil das leituras ignorantes que regem a crítica ao cinema popular brasileiro.

Marco zero de várias idiossincrasias da Boca, esta tour de force de Helena Ramos foi pilhada ao limite até praticamente ressurgir em nova encarnação: "Mulher Objeto" (1981), dirigido por Silvio de Abreu -- e ainda com Helena Ramos no papel de protagonista frígida e psicótica. Cortejadas por muitos, assoberbadas de si mesmas, as duas personagens refugiam-se no delírio e na loucura como forma de sublimarem um frenesi sexual de fazer inveja àquela que lhes servia de musa inspiradora: Séverine Serizy, a belle de jour, de Luís Buñuel.

No caso do roteiro picaretíssimo de Ody Fraga, Alice -- a "Mulher, Mulher" -- não demora a compreender estes sentimentos despudorados, e parte para a ação sem grandes elocubrações burguesas. Viúva de um psiquiatra famoso, é querida pelo advogado da família, Luiz Carlos (Dênis Derkian), a quem esnoba -- preferindo o flerte do caseiro Zé Preto (Aldo Bueno) e do cavalo Jumbo; ambos habitués de suas alucinações e divagações esquizóides.

Helena Ramos e Jumbo logo terminam protagonizando a cena que renderia dezenas e dezenas de imitações grotescas -- e até um subgênero -- dentro do futuro cinema pornográfico da Boca. Completamente alucinada e extasiada, perambulando pelo estábulo, Alice tira a blusa e o cavalo -- que é cavalo, mas não burro -- faz festinha discretamente nos seios da moça, inaugurando desnecessário trem da alegria eqüino nas imediações do Soberano.

Além dos esportes eqüestres, Alice se defronta com uma professora hippie, acampada nos fundos da sua chácara, pródiga em recitar Camões (seria uma homenagem às origens lusitanas de Garrett?), e relativizar os problemas da amiga com sociologia de botequim. Os diálogos são tão esdrúxulos que a visitante escande as sílabas e despeja o curriculum vitae completo: "Oi, eu sou Marta. Me formei em Literatura e vim para cá preparar a minha tese de pós-graduação..."

Marta e Alice fazem sexo na praia, com Alice pedindo mil desculpas por ter agredido a outra, em um dos inúmeros surtos que pontuam seu comportamento. Nova crise vitima o cavalo e o caseiro, que literalmente botam o pé na estrada e somem do mapa. No auge da insanidade -- e da cara de pau -- Alice aparece colocando fogo no corpo de Luiz Carlos, o advogado apaixonado -- quem cuidaria do espólio do marido? -- mas imediatamente descobrimos que foi mais um delírio, já que surge na cena seguinte marcando encontro pelo telefone com o recém-carbonizado.

Flanando neste universo trash, Garrett capricha e consegue até um resultado agradável de ser visto. É ajudado pela fotografia de Carlos Reichenbach e a performance desprendida de Helena Ramos; quase sempre dublada, mas ainda assim uma das grandes atrizes brasileiras de todo o sempre. Versátil no drama e na comédia, se sua voz equiparasse à presença cênica, Benedita Helena Ramos teria feito uma transição fácil do cinema para a tv e de volta para o cinema. Outras, com muito menos talento, foram assíduas da Boca e estão aí até hoje.

Três décadas depois, "Mulher, Mulher" ainda se mantém entre as 100 maiores bilheterias da história, mas fere a expectativa de quem conheça o Garrett de "A Mulher que Inventou o Amor" e "Tchau, Amor" -- artesão, obsessivo e intuitivo. Olhado no todo que o diretor realizou, parece um desperdício: sem obter a alta-voltagem erótica -- e sofisticada -- do xerox "Mulher Objeto", alimenta o tosco vaticínio de que "o cinema paulista só era auto-sustentável por vender nudez e machismo".

Driblando essas simplificações, os filmes de Garrett trazem sempre as mulheres como vitoriosas. E grande parte deles sobreviveria sem corpos em fúria; imposição dos produtores e deleite das variadas platéias do Centro e dos subúrbios. Resta-nos não repetir estereótipos, lendas urbanas, mas entender o que de fato ocultava-se e diluía-se naquele infinito imaginário de cultura e entretenimento popular.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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