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quinta-feira, 24 de junho de 2010

O GOSTO DO PECADO.


Antes de se tornar a representação em carne e osso do Analista de Bagé – personagem criado por Luís Fernando Veríssimo – e viajar pelo Brasil com a peça de teatro homônima, Cláudio Cunha atuou, dirigiu, produziu e roteirizou clássicos do cinema da Boca do Lixo.

Está certo que às vezes Cláudio não acumulava todas essas quatro funções. Mas pelo menos em um filme costuma ser lembrado na cinematografia brasileira como herói do underground nacional.

Pois bem, era 1977 e lá estava ele – então produtor da Kinema Filmes – dirigindo “Snuff, Vítimas do Prazer”, roteiro de Carlos Reichenbach e Cláudio Cunha sobre a modalidade dos pornôs “Snuff”, uma espécie de lenda urbana dos anos 70 -- filmes onde o realismo era levado às últimas consequências e os atores literalmente assassinados em cena.

Três anos depois Reichenbach assinava a fotografia de “O Gosto do Pecado” (1980), tour de force sobre o machão inseguro Júlio (Jardel Mello), que separa-se da mulher, tenta voltar, não consegue e alimenta-se das secretariazinhas suburbanas – uma delas, Alba Valéria, estrela de “Giselle” e “Os Paspalhões em Pinóquio 2000”; outra, Vânia (Simone Carvalho, esposa de Cunha na época).

O tom ocre e algo desesperado da iluminação e das imagens encaixa-se com folgas e de propósito na estrutura “novelão” do roteiro co-escrito por Inácio Araújo – também diretor assistente –, Cláudio – o diretor – e Jean Garrett – prolífico colaborador da rua do Triunfo.

Aliás, a respeito desse toque meio teledramatúrgico de “O Gosto do Pecado”, poderíamos lembrar o início de Cláudio Cunha na carreira artística – começou como ator em novelas. Mas basta uma olhada rápida no filme para percebermos o jeitão iconoclasta em que a cara-metade do terapeuta bagesense sempre se sentiu à vontade.

Afinal, poucos teriam a sacação de citar nos créditos, com toda a non-chalance do mundo, os travestis que aparecem nus em pêlo em uma boate (Susy e Tania Aloma, da “Pinck Panter” [sic].) Correndo por fora, estoques de fixações sexuais que voltariam em 1983 na explosão de “Oh! Rebuceteio”, misturadas com psicanálise reichiana e ecos de “Oh! Calcutá”.

Garotas transando embriagadamente pra valer, sem pastiche, diante de Júlio e Enéas (John Herbert). O grito de “quando eu quiser, ouviu? quando eu quiser!” de Júlio no ouvido da pobre Alba, que tem que se contentar com uma quase-curra que transforma-se em orgasmo.

Além disso, no quesito “influências”, um trecho em particular lembra “O Império dos Sentidos” – primeiro filme estrangeiro a receber o certificado de pornô no Brasil, rivalizando com “Giselle”, primeiro brasileiro a receber a mesma honra. Júlio asfixia uma garota de programa – a princípio na base do prazer (aproximando-se nisto de “O Império...”) –, mas logo descamba para a agressividade, longe da matriz japonesa, tomado pela culpa de ter abandonado o lar, a esposa (Regina, Maria Lúcia Dahl) e o filho.

Como os moralismos não fazem parte do script, vemos Júlio dividindo humilhado a mesa de jantar com o ex-grande amigo Enéas, novo namorado de Regina, a mulher que discursa como a típica feminista dos 70. Urra sobre a necessidade de ser vista, amada, procurada e sobre como tudo acabou, sobre como não há a menor possibilidade de voltarem.

Logo, o macho na visão do trio de roteiristas é uma criatura dúbia, que vive em dois mundos diferentes. Por um lado, ele não é completamente o homem estúpido, que gosta de viver a lenda que criou no escritório: a de mulherengo incontrolável. Por outro, também não é um romântico salvador e, neste sentido, a cena final antológica desperta o sorriso no canto de boca dos espectadores, alertados de que viver é uma atividade complicada demais. Vânia, alpinista social, larga o noivo e a casa da mãe, entrega-se para Júlio e este é tanto o predador cafa quanto o pai sensível que chora a saudade do filho e cogita abandoná-la sempre e sempre.

Nesse fel que perturba, “O Gosto do Pecado” cria um nó na estrutura dos folhetins, misturando-o com audácia sexual, perversão e a trilha sonora datadíssima de Jairo Ferreira. Em um tempo cada vez mais longe das samambaias no canto da sala, das calças boca-de-sino e dos penteados de gosto duvidoso, permanece a autenticidade de se falar do mundo cão que atormenta os rituais familiares em uma freqüência bem maior do que se imagina.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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