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quinta-feira, 24 de junho de 2010

OS SETE GATINHOS


A velha tentativa de se desmerecer o legado autoral de Nelson Rodrigues como mero subproduto de pornografia sensacionalista, tem o mesmo resultado da insistente citação do nome de Ingmar Bergman a cada vez em que se fala do cinema de Walter Hugo Khouri. Nada acrescenta, ou melhor, torna a compreensão do que já é difícil, ainda mais nebulosa.

Óbvio que nos dois casos a maldade dialética é evidente: com o rótulo de “imitador” de Bergman, abre-se espaço para difamar a obra de um ourives como Khouri. No papel de simples pornógrafo, Nelson também pode ser chutado para escanteio, possibilitando à burritzia fazer com ele tudo aquilo que se deseja fazer com assuntos que metem medo: ignorar, esconder, tornar invisível.

Khouri pode ter influências de Bergman, assim como Nelson utilizava o escândalo sexual como recurso dramático importante. No entanto, substituir o todo pelo detalhe é ignorância, tolice, fraude – estrutura de pensamento que no Brasil, infelizmente, mesmo aqueles que se dizem “esclarecidos” adoram abraçar ou simplesmente repetir por medo da formulação de uma alternativa original de questionamento.

Faço toda esta introdução para chegar em “Os Sete Gatinhos” (1980), filme de Neville de Almeida baseado na peça escrita por Nelson em 1958. Em “Os Sete Gatinhos” o já calejado Nelson, embriagado pelo fuzilamento que recebia dos seus pares, usa os recursos mais simples que conhecia para produzir um texto entremeado de simbolismos. O resultado deixa transparecer a grande questão da genialidade rodrigueana: a fronteira onde começa a arte e termina o simples desfile de existências torpes.

O filme de Neville é interessante por captar e animar exatamente o que Nelson pensa de seu próprio paradigma. O roteiro co-escrito por Nelson ajuda, mas o elenco fascinante e a direção segura amplificam o esforço. Toda a atmosfera do filme parece remeter exatamente àquilo o que a peça diz. O quadro da família Noronha, mesquinha e socada no massacrante e onírico subúrbio carioca, não poderia ser diferente do que foi composto e filmado.

Noronha (Lima Duarte), é um contínuo de repartição, pai de cinco filhas: Silene (Cristina Aché), Aurora (Ana Maria Magalhães), Arlete (Regina Casé), Hilda (Sura Berditchevsky) e Débora (Sônia Dias). Quatro delas se prostituem – ou melhor, não chegam a ser profissionais gabaritadas, mas prestam favores sexuais esporádicos a homens em troca de dinheiro. Tudo o que ganham entregam à mãe, que sonha com um casamento virginal para a filha caçula, Silene, estudante em um colégio interno.

Este equilíbrio patológico vai sendo quebrado aos poucos, dentro da estrutura comum aos textos de Nelson. Inicialmente apresentando um recorte social que parece perfeito, desenvolve a narrativa retratando sua dissolução. A mãe, apelidada de “Gorda” pelo marido – em alguns lugares do Brasil o tratamento é carinhoso; no Rio, ofensivo e humilhante –, tem um impulso sexual fora do comum. Como o marido não a procura, masturba-se e pinta desenhos obscenos no banheiro.

Paralela à questão da Gorda, surge o personagem do cafetão Bibelô (Antônio Fagundes), que engravida Silene e tem um caso com Aurora. Bibelô usa a desculpa canalha tão familiar a mitologia rodrigueana, mentindo sobre uma esposa à beira da morte, repleta de chagas pelo corpo, banhada pelo marido que, em tamanho sacrifício, esquece-se do monte de pele e ossos em que a coitada se transformou. O resultado desta balela provoca um encantamento ainda maior na tonta Aurora, que aguarda a viuvez do cafa para ser a nova esposa.

Cada parte da trama vai se encaixando até o assassinato de Noronha pelas filhas – sideradas como bacantes, entulhando o cadáver sobre a mesa de jantar. Assim, basta dizer que antes do caso com Bibelô, Silene fora violada pelo pai. Um dia matara a pauladas, no pátio do colégio, uma gata que depois de morta deu à luz sete gatinhos. O entojo com o bichinho, ela explica, talvez tenha surgido do fato de estar grávida, não desejar um aborto e idolatrar o peito cabeludo e suarento de Bibelô.

Dias antes, Noronha teve um presságio. Sonhou com o “homem que chorava por um olho só”, responsável pela dissolução do seu lar. Esquecera-se, no entanto, de gritar em voz alta que o vilão era ele mesmo. Rufião de todas as garotas, oferece-as a Saul (Sady Fraga) e Dr. Bordalo (Cláudio Correa e Castro) – este, suicida-se ao concretizar com Silene o desejo incestuoso de amar a própria filha.

Abre-se aqui um parênteses, pois apesar de ser quase um anti-freudiano, em “Os Sete Gatinhos” Nelson trabalha o tempo todo com temáticas psicanalíticas. O assassinato da gata, em resposta ao trauma invejoso de Silene – se a ela não é permitido ter filhos, ao animal também não deve ser – parece uma vinheta clínica retirada de um texto de Melanie Klein. O próprio movimento “atrair-possuir-destruir”, tão estudado em relações interpessoais de inveja, ocorre ipsi literis entre Silene e a gata.

Há outra grande questão psicanalítica a ser percebida, dessa vez refletida em todo o universo autoral de Nelson: a exagerada perversidade masculina, no fundo, é o mais legítimo recalque, concluindo-se que no jogo rodrigueano, o homem é quase sempre um náufrago invejoso do feminino e seus desdobramentos.

Voltando a detalhes mais amenos, em “A Dama do Lotação” – também dirigido por Neville D’Almeida – a lendária banda “A Cor do Som” pontuava a narrativa com uma música incidental, criada a partir da trilha sonora de Caetano Veloso. “Os Sete Gatinhos” tem a felicidade de trazer o conjunto novamente, desta vez recriando as composições de Erasmo Carlos.

Num volume agudíssimo, as guitarras distorcidas produzem um estranhamento que se assemelha a miados de gatos, tocadas quando a fúria na família de Silene aumenta. Além disso, prestem atenção a outro trecho. O arranjo para a canção “Pecado Original” – retirada de “A Dama do Lotação” – é ouvido enquanto Silene conta a Aurora sobre o namorado.

Por tudo e contra tudo, “Os Sete Gatinhos” afirma-se como um filme prazeroso, daqueles que se fazem com a observação atenta do enredo que se quer descortinar. Sady Cabral, veterano ator e compositor, chegava ao estúdio e adquiria um porre de vida que medicamento algum ainda conseguiu inocular. Thelma Reston, Regina Casé e Maurício do Valle garantem o ritmo da chanchada libertina, mas num plano maior temos Lima Duarte. Desfigurado, anormal, Noronha comanda as atividades como um pêndulo que tende sempre ao erro, à flagelação. Não espanta que sua morte leve a um recomeço, a um orgasmo final que alivia sadicamente aos espectadores, antes dos letreiros subirem. No clima da festa macabra, vamos nos despedindo de um por um, sabendo que a algazarra não esconde, mas adoça a tortura emocional.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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