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quinta-feira, 24 de junho de 2010

IPANEMA ADEUS


Espiado sob a ótica da tragédia sócio-comportamental de hoje, o Rio de Janeiro dos anos 70 lembra uma Xangri-Lá balneária e esplendorosa. Alguma coisa de muito ruim aconteceu com a cidade desde então.

Uma análise suficientemente boa do que aconteceu e por que aconteceu, ainda está por ser feita, despidos os véus da hipocrisia e do ufanismo barato. Em parte, a decadência carioca talvez reflita a decadência da cultura e do orgulho nacional como um todo. Por outro lado, certos fenômenos abusivos são estritamente locais. Quem sobrevive no Rio e pouco sai da cidade, não consegue ter parâmetro do quanto a urbe piora; ao mesmo tempo, quem viaja bastante ou se resguarda no oba-oba -- de tecer loas às belezas naturais e afins -- ou se espanta e parte sem querer voltar.

O que oprime no Rio de Janeiro contemporâneo parece um sentimento difuso de perda, de orfandade daquilo que um dia foram e -- parodiando o Capitão Nascimento -- nunca (mais) serão.

É como a piada marota do português que migrando para a Inglaterra não aprendeu o inglês, e esquecendo o idioma natal, tornou-se mudo para o resto da vida. A angústia dessa eterna rivalidade consigo mesmo no passado transformou os cariocas em um povo perdido, atônito; e o cotidiano público em um simulacro de "One Flew Over the Cuckoo's Nest". Lançado em Portugal pelo adorável e sonoro título de "Voando Sobre Um Ninho de Cucos".

Todas essas questões me vieram à mente quando assisti a "Ipanema Adeus" (1975) que já tratava de angústia e fuga no auge da Guanabara. Escrito e dirigido pelo iniciante Paulo Roberto Martins, o filme reuniu elenco luxuoso, locações caprichadas e um roteiro polêmico para contar a história de Carlos (Hugo Carvana), jovem executivo que pairando sobre o ninho de cucos cariocas, enfia na cabeça o sonho de "se mandar", "transar outras", botar o pé na estrada e ir morar em Porto Seguro, Bahia.

Àquela altura dos anos 70, Porto Seguro ainda podia ser chamada de paraíso e servir de contraponto dialético ao caos de uma grande metrópole. Um preâmbulo enorme é gasto mostrando como e por que Carlos toma a decisão: saturado, neurótico -- "A neurose é a poluição da alma!" -- chega ao ponto de esmurrar um homem vestido de palhaço na festa de aniversário do filho. Na cópia em vídeo, totalmente reeditada, a famigerada surra no palhaço acaba sendo exibida duas vezes -- na abertura e no meio -- como prova definitiva de que um homem que odeia palhaços está mesmo no fim da linha.

Além disso, Carlos trai a esposa Helena (Bibi Vogel) com um infinidade de mulheres; e tenta ser demitido a todo custo da empresa onde trabalha. Vogel, uma linda pantera que gravou discos e trabalhou também com Carlos Hugo Christensen no clássico "A Morte Transparente", não merecia tamanha desfeita. Mas Carlos cede na separação "todos os seus bens", e ruma com uma nova namorada, Gilda (Monique Lafond) para a tão sonhada vida de pescador baiano.

Embora quisesse mandar seu protagonista embora, Paulo Roberto Martins faz a câmera lamber com carinho alguns marcos importantes do Rio Xangri-Lá: o extinto Tivoli Park, na Lagoa; e o famoso Píer de Ipanema, uma construção feita pela Companhia de Saneamento em 1971, que serviu de point para a geração de intelectuais, hippies e surfistas que florescia no bairro. Sinal dos tempos, quando o filme chegou aos cinemas o Píer já não existia -- e tal qual o Palácio Monroe, na Cinelândia, alguns sonhadores defendem até hoje sua reconstrução, como se a engenharia pudesse trazer de volta um abstrato melhor e desaparecido.

Feliz da vida, Carlos mergulha no seu sonho particular. Não demora, claro, toda a idealização vai por água abaixo: ele não tem a mínima vocação para pescador, a namorada flerta com um amigo, o silêncio o aflige. Acaba retornando. Enlouquecendo novamente.

O personagem mais interessante da trama não é Carlos, mas seu sogro. Velho sombrio, que critica Chico Buarque ("Onde já se viu fazer fado na terra do samba?"), ele secretamente apóia os desvarios do genro, e realiza um daqueles pensamentos setentistas típicos, fac-simile da obra de outro diretor, Xavier de Oliveira: "Vai Carlos, vai. Chegar até onde eu cheguei você chega, mas pra quê? (...) O nosso barco é de palha, e nós vamos afundar. Nosso mundo é feito de papel, ilusão e saudade. Saudade do tempo que a gente podia ter optado por outro mundo. Se a gente ficou com esse é porque teve medo dos nossos pais (...) Nossa opção é morrer agora, para não morrer depois de tristeza (...)".

Apesar disso, o Carlos de Paulo Roberto Martins distingue-se bastante dos personagens de Xavier por sua vocação histérica, incisiva. Colabora nesta distinção a exuberância de Hugo Carvana, que equilibra o teor heideggeriano do personagem com a típica cafajestagem carioca. Contracenando com Maria Lúcia Dahl, uma aparição naquela metade da década, Carvana parece reencarnar Dino, o anti-herói de "Vai Trabalhar Vagabundo", e faz uma apologia de Eros, onde obviamente havia o inconsciente de Tânatos operando.

A inexplicável reedição do VHS, em algum ponto dos anos 80, prejudicou bastante essas nuances reflexivas, tropical-filosóficas. Introduziu-se uma banda sonora artificiosa, executada por um grupo de músicos ao qual pertencia o próprio diretor. Em uma investigação cheia de tempos mortos e coisas não-ditas, os comentários instrumentais geram efeito cômico -- ou irritante.

"Ipanema Adeus" merece nova chance, pois é de uma sinceridade comovente. Paulo Roberto Martins traçava ali uma quase autobiografia, e de se espantar que suas angústias acabem tendo um sentido manifesto para a Ipanema e o Rio dos anos 2000. O pior é que não podemos sonhar em fugir para a Bahia, porque nem aquela Bahia existe mais.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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