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quinta-feira, 24 de junho de 2010

ATÉ QUE A VIDA NOS SEPARE


Vamos iniciar uma série de filmes dos anos 90, dando preferência aos títulos que, apesar da qualidade, permaneceram obscurecidos por outros, às vezes piores, porém merecedores das bençãos da crítica por contingência ocasional. Devido à relativa proximidade das produções, um diagnóstico me parece fácil. O Brasil produziu em pequena escala (ainda produz) ótimos filmes. Só não viu quem não quis – ou, na maioria das vezes, porque não pôde.

Excluindo a idéia -- totalizante, otimista -- de "Retomada" a partir de 1995, creio que a lógica para se entender a filmografia do fim do século XX encontra-se um pouco antes, na década de 80. Com a lenta volta da democracia, vivemos o paradoxo de um retorno também gradual a valores conservadores, caretas mesmo, que o cinema dos anos 70 abominava e, de uma forma ou de outra, tinha prazer em atacar.

Nos estertores da década de 90, o serviço estava completo: toda e qualquer referência ao libertarismo do sexo e das drogas foi suplantada por aquilo que é correto chamarmos de "estética moralista". E o que seria essa "estética moralista"? Diferente da produção européia e até latino-americana, os filmes brasileiros se alinharam cada vez mais ao ideário do cinema norte-americano, baseados na filosofia de que precisavam "encontrar um público perdido".

A busca resultou em nada; ou melhor dizendo, em profunda limitação para a cinematografia de um lugar tão culturalmente rico e complexo. Filmes-chave do período, como "Central do Brasil", são matrizes de repetições intermináveis, por conta desta obsessão messiânica de que "algo precisava ser reinventado". Perdeu-se ótima chance de criar no país uma alteridade, uma diversidade; trocada pela denúncia social compulsiva e pela excessiva preocupação em negar o passado – considerado obsceno e maculado por vícios, nunca por virtudes.

Ainda assim, restam flores. Inaugurando a série, escolhi "Até Que a Vida Nos Separe" (1999), dirigido pelo artista plástico e publicitário José Zaragoza. Espanhol naturalizado paulistano, ex-aluno da Escola de Belas Artes de Barcelona, Zaragoza fez sobre o roteiro de Leopoldo Serran um apanhado dos jovens na faixa dos trinta anos, com um olhar específico – e apaixonado – à cidade de São Paulo.

Cheio de falhas adoráveis, "Até Que a Vida Nos Separe" traz a metrópole como protagonista incidental, na linha que Ugo Giorgetti consagrou. Ambos oriundos da publicidade, ambos relativistas de sua visão apaixonada, a diferença reside no fato de que o espanhol tentou, mas não logrou êxito, em ser crítico de costumes – provocando no espectador a impressão de um estilo frouxo, a ser maturado, relevando suas ótimas intenções.

A história de cinco amigos – João (Alexandre Borges), Lulu (Betty Gofman), Pedro (Norton Nascimento), Paulo (Marco Ricca) e Maria (Júlia Lemmertz) – perde-se às vezes no excesso de protagonistas, mas sobrevive pelos pequenos dramas de cada um. O melhor deles é o de Paulo, em dúvidas quanto a sua homossexualidade, que contrata um garoto de programa para se libertar. Em seguida temos Pedro, negro bem-sucedido, que também contrata -- atenção para a importância do dinheiro -- prostitutas louras para sexo ocasional.

João, Lulu e Maria vivem basicamente a procura de um grande amor – João e Maria apaixonados um pelo outro, e Lulu a vítima de uma armação dos amigos, que contratam (pela terceira vez, a obsessão pelo sexo remunerado) Tonho (Murilo Benício) para ser seu acompanhante por 24 horas.

Os cinco têm na base dos conflitos um problema familiar, que culmina em tragédia com João. Verborrágicos, discutem todo o tempo esses dramas e desdobramentos. Lembra um pouco o velho seriado "Ciranda, Cirandinha", da Tv Globo, revisto para o ambiente yuppie, narcisista e mercenário dos anos 90.

Resoluto em mostrar São Paulo, o diretor consegue tomadas lindíssimas, colocando cada um dos heróis para viver em apartamentos e lofts deslumbrantes. Guarda aí outra idiossincrasia típica do cinema paulista 80-90: aquela que enxerga a urbe como microcosmo pairando acima da realidade do país -- espécie de Nova York acidentada nos trópicos. Traz influências do neon-realismo manipuladas em algo contemporâneo, releitura possível até em filmes recentes como "O Signo da Cidade" (2007).

Qualidade bem-vinda, "Até Que a Vida Nos Separe" não caiu na tentação moralizante, retratando sem pudor o consumo de cocaína e o erotismo, principalmente entre Pedro e suas inúmeras parceiras. Alguns ajustes o fariam menos conciliador, esquemático e piegas; mas seria exigir muito que fosse diferente. Importa é que José Zaragoza fez um filme sincero, honesto e sem medo, desses cada vez mais raros. Promete fazer outros dois e completar uma trilogia nos próximos anos, o que nos deixa ansiosos por melhor cinema.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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