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quinta-feira, 24 de junho de 2010

À FLOR DA PELE


Denise Bandeira é hoje mais conhecida como um apêndice de biografados famosos, especialmente Renato Russo, personagem para quem se transformou “em amiga e fiel conselheira”, segundo diversas reportagens e livros. A injustiça não poderia ser maior, pois na verdade Denise é um dos ícones da juventude brasileira dos anos 70 – protagonizou o histórico seriado “Ciranda, Cirandinha” na Tv Globo, em 1977 – e roteirizou inúmeras séries de tv e filmes – dentre estes “Bar Esperança”, em parceria com Hugo Carvana.

Em “À Flor da Pele” Denise interpreta Verônica Prado, universitária de vinte e pouquinhos anos, problemática, “intensa”, “em busca de si mesma” (leia-se “chave de cadeia”), apaixonada pelo professor de teatro, Marcelo Fonseca (Juca de Oliveira), o cinquentão ideal. Charmoso, culto, possuidor de toda a segurança emocional que ela gostaria de ter, mas – o que para ela não representa impedimento nenhum – casado.

O filme de 1976 é baseado numa peça de teatro escrita por Consuelo de Castro, e serve de veículo à atriz, que aparece em praticamente todas as cenas. Denise arrematou o Kikito de melhor atriz no ano seguinte, concorrendo com a futura bombshell Sonia Braga, do badalado “Dona Flor”. “À Flor da Pele” ainda levaria o o troféu de melhor filme, deixando para um quase imberbe Bruno Barreto o de melhor direção.

O que se deve ressaltar no trabalho do diretor, Francisco Ramalho Jr., é a aproximação da trama segundo o olhar de Verônica. Ramalho faria algo parecido cinco anos depois, em “Filhos e Amantes” no qual acompanha um grupo de jovens que se isolam na Serra de Itatiaia. Em “Á Flor...”, porém, o interesse principal é compreender Verônica.

De início me neguei a adotar a tese de que a menina buscava no professor maduro a representação do pai acolhedor, que substituísse o pai real, com quem briga, luta, cospe e xinga. Pensei que seguir este raciocínio seria de uma obviedade intolerável. Mas qual não foi a surpresa ao ver o drama às claras, falado com todas as letras? “Papai, você é um caretão!”, grita a Marcelo em uma das brigas em que se enrola com ele, depois de levar um sonoro tapa.

Verônica precisa, precisa, precisa. Quer apoio, apoio, apoio. Tanto faz se o mundo em volta cai, se induzir a esposa de Marcelo (Beatriz Segall) ao suicídio contando-lhe sobre o caso, se bater pézinho tirando o poster da filha do professor da parede do quarto. Eu sou eu, por que você não me aceita sem perguntas, parece dizer.

A teatralidade é traço marcante em pessoas de comportamento borderline (limítrofe), como Verônica. Uma hora, corta-se com um caco de vidro. Chora alto para atrair a atenção do pai, rejeita-o em seguida. Em outras, bate a porta com um estrondo, garantindo ser a última vez em que fala com o professor. O perdão vinha sempre e com ele agarrava as mãos do pai postiço, como se dali dependesse a própria vida.

Nelson Rodrigues diria que Verônica, “lésbica de si mesma”, tem aquele encantamento vertiginoso pelo sexo. Ewerton de Castro sofre, é o amiguinho bonzinho, que ela usa para enciumar o lobo cinqüentão; Jonas Bloch, em pequena ponta, assiste felizardo ao momento em que a parte de cima do biquini é tirada, talvez como manifesto contra a instituição sacal de ser apresentada pelo pai a um futuro bom marido.

Mas o que poderia ter sido o momento de guinada para Verônica é desperdiçado pela sucessão de equívocos que começaram de um equívoco mesmo. O velho truque de não tomar o anticoncepcional de propósito. Engravida, esconde de todos, em noite muito louca embebeda-se e na volta para casa apanha do pai, que – e esta é a sina dos acompanhantes de alguém parecido – surta junto e agride-a. Aborta em conseqüência, colocando fim ao projeto de ser mais uma das muitas mães fálicas, que usam o filho para auto-realização pessoal.

O roteiro, como vêem, é rico. A abordagem psicanalítica soberba, talvez seja mais fruto de intuição do que de estudo, pois a personalidade borderline de Verônica é tão bem desenhada que parece tirada de trabalhos sobre o assunto, principalmente os de Otto Kernberg, no final daquela década de 70. Sua dependência mórbida, sua obssessão por engravidar (borderlines adquirem esta monomania como forma de compensarem o vazio existencial que sentem), a tendência à idealização absoluta de Marcelo seguida de uma ridicularização vexatória; tudo é tão bem encaixado na composição da personagem que a torna um arquétipo do cinema, a ser rediscutido em outros filmes.

Muito se diz que o diretor, Francisco Ramalho, teria colocado na obra sua própria história de vida, através da composição de Marcelo (alguma aproximação com os Marcelos de Khouri?). Mesmo sendo um alter ego, seu Marcelo é um homem sem qualquer maniqueísmo, cruel e canalha às vezes e em outras ocasiões completamente vítima dos pitis de Verônica. Em suma, é um ser humano tentando sobreviver e ser feliz à sua maneira.

Denise Bandeira e Juca de Oliveira por outro lado, se apegam a essa riqueza de detalhes e possibilidades e dão um show à parte. Contando ainda com o pano de fundo charmoso de São Paulo nos anos 70 (a cidade mais injustiçada do cinema mundial, já que nunca é mostrada) e a bela plástica de Bandeira, Ramalho fez um dos melhores e mais adultos filmes da cinematografia brasileira. Merece com certeza relançamento em dvd duplo.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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