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quinta-feira, 24 de junho de 2010

FULANINHA.


“Fulaninha” (1986) é tão bom, mas tão bom, que só poderia ter sido feito com o desprendimento e a tranqüilidade que caracterizavam a mão segura de David Neves. Filmando como quem respira, de David Neves pode-se dizer tudo, menos que carregasse em seus filmes o peso do mundo: toda a tensão dramática ou trágica que consegue exprimir logo acaba absorvida em considerações atenuantes, sejam de humor, de lirismo ou mesmo de resignação.

Isso o torna um exemplo de cineasta no qual os mais jovens deveriam se mirar, antes de trocarem de profissão ou aprenderem que quanto mais alguém afirma que é importante, menos com certeza tem qualidades próprias para sê-lo. Do alto de sua genialidade discreta, David relutava em fazer algo além de filmar e viver. E gostava de filmar, quase sempre, aquilo que vivia ou observava nas ruas da cidade amada.

“Fulaninha” é exemplar dessas andanças: como morador da Avenida Prado Júnior, no epicentro de Copacabana, tornou possível um filme sobre o cotidiano da rua e sua vizinhança. Se o Rio de Janeiro encerra uma síntese do Brasil, pode-se dizer que Copacabana é a síntese do Rio – e o microcosmo do país em toda a sua grandeza e pequenez.

Bairro nobre, de frente para uma das praias mais bonitas do mundo, na Copacabana dos hotéis de luxo e da vida abastada há um avesso facilmente visto, em enormes edifícios de apartamentos minúsculos e na população flutuante, que diariamente desembarca na princesinha do mar em busca dos dólares do turismo e do comércio. Isso torna o lugar por vezes saturado e caótico – fascinante para quem o compreende em sua multiplicidade e intrigante (por vezes hostil) para quem chega forasteiro ou provinciano.

E é nessa Copacabana de tantas explicações que David coloca sua fauna de personagens. Na Prado Júnior convivem os amigos Bruno (Cláudio Marzo), Canela (Roberto Bomfim), Jardel (José de Abreu) e Hermínio (Flávio São Thiago), todos naquele limite de desocupação e disponibilidade que tornam um mistério a sobrevivência material e financeira de certas figuras cariocas. Freqüentadores do mesmo bar, aos poucos percebemos que se Jardel é desempregado profissional, Hermínio é advogado. Já Bruno e Canela atuam na mesma área – o cinema – mas se o primeiro é cineasta pretensioso, o outro ganha dinheiro com vídeos pornográficos.

É Bruno que, em uma tarde copacabanense igual às outras, descobre Fulaninha (Mariana de Moraes), garota que namora um surfista (Marcos Palmeira) e por quem o lobo quarentão adquire uma espécie de obsessão delicada. Sem que Fulaninha perceba, Bruno passa a filmar seu cotidiano, suas idas à praia, seus laços de amizade momentâneos. Como há um filme dentro do filme, David aproveita para nos mostrar a Prado Júnior e as miudezas de seus humanos habitantes.

Dramas paralelos vão acontecendo: Hermínio perde um longo processo que o obriga – supremo desgosto – a trabalhar para sobreviver (!). Fulaninha tem uma relação conturbada com a mãe, Rose (Kátia D´Ângelo), e Rose por sua vez tem caso amoroso com um marginal (Paulo Vilaça). Em certo momento esses destinos se cruzarão e cada um libertará o melhor de si para o mundo.

Além da anotação antropológica dos hábitos locais, “Fulaninha” oferece como atração extra um retrato da época, os meados dos anos 80, com toda a inocência que se dissolvia dando lugar ao país amargurado e sem amor-próprio em que vivemos hoje. Mal ou bem, o Brasil e o Rio de Janeiro retratados no filme transparecem um orgulho cosmopolita e cordial – que não se perdeu, mas que o cinema brasileiro contemporâneo, no rastro da dissolução de nossa identidade cultural, passou a ter vergonha de mostrar.

“Fulaninha” não é o melhor filme de David Neves – o título vai para “Muito Prazer”, de sete anos antes. Junto com “Jardim de Alah”, os três compõe a famosa trilogia carioca do diretor, que morreu em 23 de novembro de 1994 e deixou de presente para o mundo um elogio à vida – principalmente à vida passada entre os bares, ruas e praias da Zona Sul. Todos os brasileiros, à menção de seu nome, poderiam dizer baixinho, com a suavidade que o caracterizava: obrigado.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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