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quinta-feira, 24 de junho de 2010

EROS, O DEUS DO AMOR.


107 minutos, produção de 1981, escrita e dirigida por Walter Hugo Khouri. Acompanhamento incidental da Traditional Jazz Band, música de Rogério Duprat. No elenco, Lillian Lemmertz, Denise Dummont, Norma Bengell, Dina Sfat, Renée de Vielmond, Kate Lyra, Nicole Puzzi, Selma Egrei, Monique Lafond, Kate Hansen, Lara Deheinzelein, Maria Cláudia, Christiane Torloni, a voz e o vulto de Roberto Maya.

“Eros” foi o 19o. trabalho de Khouri, na carreira iniciada em 1952, com “O gigante de pedra”. Mas devemos esquecer o aspecto cronológico e analisarmos o filme à luz de “O Corpo Ardente”, lançado quinze anos antes, em 1966, para compreendermos alguma coisa a respeito da intimidade do personagem “Marcelo”, alter-ego do diretor.

Se em “O Último Êxtase” Marcelo é um adolescente em fuga – personificado por Wilfred Khouri, filho do diretor – em “O Corpo ardente” Marcelo é o menino levado pela mãe a conhecer as montanhas e o trono de pedra, às bordas de um precipício, cena que mais tarde se transformará num dos pontos centrais de “Eros”. Este encontro materno, edípico, fundamental -- ao qual o diretor voltará reiteradamente e intercalará com imagens de um animal enjaulado, furioso --, represa a gama de sentimentos do Marcelo quarentão, observado em “Eros” em plena crise de meia-idade.

De Barbara Laage, em 1966, a Dina Sfat, em 1981, a mãe de Marcelo passa da depressiva de “O corpo ardente” à invisível no “Último Êxtase” para, finalmente, já falecida, ter a foto rasgada por uma dupla de prostitutas sádicas. Convidadas ao programa, foram ao último andar do prédio construído pelo pai, cúmplice na “caça e domínio” de meninas por todo território paulistano.

“São Paulo, Brasil, América do Sul, hemisfério meridional, Terra, sistema solar, universo... um deles. Eu nasci aqui. Vivo aqui a maior parte do meu tempo, cada vez mais.” O texto inicial de “Eros”, narrado em voice-over por Roberto Maia (Marcelo) é das coisas mais belas em cinema nacional, a sinfonia plena da metrópole, reveladora da profissão de fé do personagem. “Em quase todos os lugares alguma coisa aconteceu. Por isso, mas não só por isso, alguma coisa me agarra aqui, me prende, me segura e me fascina. [...] No meu plano individual, me sinto como ela: o mesmo turbilhão, a avalanche, a ânsia e a fúria, a falta de medida, a vontade de não sei o quê. O meu interesse se concentra em mim e nas minhas obsessões, que eram muitas e que agora reduziram-se a praticamente uma só. Restou apenas uma coisa encrustada aqui dentro, que às vezes parece o começo e outras o fim.”

Mas Marcelo quarentão nunca é visto, é presumido. Não tem o rosto do filho de Khouri, não tem qualquer outro referencial imagético. Como dissemos acima, conhecemos apenas a voz e o vulto de Roberto Maya. Em termos de narrativa cinematográfica, o filme cria paixões e antipatias, pois muitos posicionam-se contra o recurso da, assim chamada, câmera subjetiva.

Vemos o que Marcelo vê, ouvimos o que ele ouve, pensamos o que ele pensa e o que não dá a entender aos outros membros da trama. Entramos no que possa haver de mais tortuoso e nostálgico no personagem – as caminhadas com a mãe, os olhares pelo corpo da filha, as cenas de sexo precoce, o sexo atual, o desejo que explode como o urso, visto de relance, e morre depois de satisfeito. Em um dado momento, lembra-se de uma aula com a professora de filosofia no colégio. Discute-se Eros, o deus do amor, citado por Platão em “O banquete”: “É pobre e está longe de ser delicado e belo, como muita gente supõe. E vive como sua mãe, em eterna penúria. Por outro lado, herdeiro das qualidades paternas, anda sempre no encalço do belo e do bom. Não é mortal, nem imortal. No mesmo dia floresce e vive, enquanto na abundância; mas quando satisfeito, morre.”

Assim, os impulsos priápicos de Marcelo levam a uma sucessão de personagens femininas contrapostas a um único masculino – desprezando-se o mordomo, peça coadjuvante no enredo –: ele próprio. Duplo, dúbio, como a natureza do Eros, que vive diariamente num esquema de moralidade cindida. A personagem de Denise Dummont (Ana) lê trechos de um livro sublinhado, na garçonniere, que ressaltam a dualidade: “Olha aqui isso. Isso serve pra nós, hein, Marcelo? Há uma interessante mistura entre moral absoluta e relativa dentro do indivíduo. Na Gestalt nós usamos o termo ‘duplo padrão’, o que significa que temos duas formas de medida moral: uma para nós e uma para os outros.”

Note-se que “Ana” foi outra das obsessões de Khouri. Em “As deusas”, por exemplo, era a psiquiatra (Kate Hansen), que se mistura com a dor da paciente e termina em fuga. Em “Eros”, Ana representa a tentativa de conversão de Marcelo para um lado mais humano de relacionamento amoroso. Assemelha-se com uma força interna, que tenta-o a desprezar os dias de conquistador, a esquecer o apartamento, a construírem algo juntos, mas que vê tudo evaporar-se com a chegada da segunda Ana (Cristiane Torloni), atriz de cinema, jovem. A segunda Ana leva-o, então, a outro filme. Ao filme dentro do filme dentro de outro filme.

O diretor, Serafim Gonzalez – o dentista de “Convite ao prazer” --, em cena, o menino de colo (Marcelo) que vira a revolucionária de 1935 escondendo-se numa gruta e observava seus traços com prazer ainda incompreensível.

Temos aqui um primeiro filme (sobre o evento histórico de 1935), um segundo filme (“Eros, o deus do amor”, em que Marcelo está no set de filmagens do primeiro) e um terceiro filme (que começa ali, ao término de “Eros”, quando Marcelo, no meio das filmagens, volta em flashes sucessivos a todos os encontros amorosos, ao trono de pedra, à sensação de observar ao animal enclausurado, à paixão, abraçado à mãe). Este terceiro filme seria retomado em “Eu”, de 1986, em que o personagem aprofunda os laços com a filha e ainda aproveita da grande entourage feminina que permanece. Mas os filmes de Khouri são universos, muitas vezes, interligados. E serão analisados futuramente, leitores, com bastante calma.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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