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quinta-feira, 24 de junho de 2010

A NOITE DO MEU BEM.


O que é bom ou ruim em cinema? Esse tipo de posicionamento quase sempre se presta ao cerceamento de opiniões e visões, e muito pouco à revisão e prospecção de filmes esquecidos ou mal divulgados.


Todos que lêem este site sabem que falo isso em defesa do cinema popular brasileiro, aquele que teve seu auge nos anos 60, 70 e 80, e que o senso comum acostumou-se a enfeixar genericamente sob o rótulo de pornochanchada – a ponto de termos que fazer, por vezes, um exercício neologista para lembrar dos policias e dos dramas realizados na mesma época e nos mesmos esquemas de produção.

Os tempos eram outros, e o cinema ainda ocupava um espaço central nas horas de lazer das pessoas – já que nem o videocassete existia. Não raro, um filme nacional dava dois, três milhões de espectadores – e a maioria chegava com facilidade aos 100 mil.

Salas como o Marabá e o Ipiranga – em São Paulo – ou o Olinda e o Roxy – no Rio de Janeiro – comportavam mais de 1.500 pagantes. Hoje em dia, muitos filmes de diretores renomados não batem na casa de 10 mil espectadores e, para se ter uma idéia, em dezembro de 2006, o maior cinema do Rio é o Palácio 1, na Rua do Passeio, que possui pouco mais de 700 lugares. No caso dos grandes cinemas paulistas alguns, como o Marabá, continuam a existir, mas aposta-se até quando.

E o povo gostava não somente dos filmes populares com o conteúdo de comédia sexual, mas de quase tudo que se produziu na época. Crime, terror, suspense, divagações existenciais, romances açucarados, paródias de sucessos norte-americanos – todos os gêneros foram investigados por nosso cinema e é um mistério – na verdade, é triste constatar – que esse batalhão de títulos permaneça grande parte esquecido e não sejam revistos periodicamente – analisados com distanciamento e isenção – por quem se interesse em colher pérolas cinematográficas.

Espera-se o dia em que o espectador brasileiro descubra, com surpresa, que filmes como "O Quarto", de Rubem Biáfora, "O Último Êxtase", de Walter Hugo Khouri, ou "Rainha Diaba", de Antônio Carlos Fontoura, podem ser muito mais significativos do que seus congêneres internacionais. Afinal, falam nossa língua e expressam emoções familiares a nossa cultura e formação.

O advento do Canal Brasil, em 1998, deu um passo importante para esse fenômeno curioso da redescoberta: desde então, gerações mais novas – como eu, por exemplo, nascida em finais dos 70 – tivemos acesso a parcelas antes praticamente desaparecidas da produção nacional, exibidas pelo 66 da Net.

Sem o Canal Brasil, esse tipo de cinefilia era (ainda é) restrita apenas às locadoras melhor sortidas, às ocasionais mostras de diretores específicos ou às reprises altas horas da madrugada nas tvs abertas. Mesmo para os fanáticos pelo Canal Brasil, assistir a qualquer filme que não conste na grade do canal pode ser o mesmo que localizar na sua cidade um Opala 77 pintado de zebra: tarefa surreal e impossível, quando não recebida com desdém e ironia, mesmo nas melhores casas do ramo.

Tente, por exemplo, ver "Corpo Devasso", filmaço da Boca dirigido por Alfredo Sternheim, estrelado e produzido por David Cardoso. Ou "Filhas do Fogo", "O Desejo" e "Anjo da Noite", três dos melhores trabalhos de Walter Hugo Khouri ou... A lista é enorme e gastaríamos páginas e páginas citando aquilo que o Matheus Trunk chama, com muita propriedade, de "não-lançamentos".

Longe dos olhos, longe dos corações e mentes: assim formou-se uma geração de espectadores, que aceitam com facilidade o raciocínio de que se ninguém conhece um filme, ele não deve valer mesmo muito a pena. É um pensamento fácil, que todos nós -- inclusive eu -- abraçamos algumas vezes por comodismo.

Um ciclo vicioso acaba por se instalar: ninguém assiste porque ninguém comenta e aquilo que ninguém comenta porque não tem acesso não é lançado em dvd, muitas vezes não chegou sequer ao vhs e, em situações mais dramáticas, são cópias únicas inutilizadas em arquivos precariamente conservados.

Se não tivermos curiosidade de reavaliar a história do cinema brasileiro com boa vontade, ela corre o risco de não estar mais lá quando precisarmos. "Precisar" aqui se aplica no sentido amplo: inclusive porque, se algum jovem cineasta estiver precisando de influências e inspirações, aconselha-se um mergulho livre de preconceitos na filmografia popular brasileira.

Encontra-se quase tudo: todas as soluções possíveis, imaginárias e originais -- e quem simplesmente souber retrabalhar esse know-how no presente, com certeza será aclamado nos trópicos da mesma forma que alguns talentosos cineastas europeus e norte-americanos dos anos 90 o foram por assistir com atenção o que seus ídolos haviam filmado em meados dos anos 60 e 70. Movimento semelhante precisa ser feito tardiamente no Brasil, onde quase ninguém ousa dizer-se influenciado pelo passado do próprio cinema nacional.

O primeiro passo, talvez, seja a superação do legado auto-depreciativo de se comparar a produção nacional com a produção cinematográfica estrangeira, notadamente com o padrão hollywoodiano, na intenção de se provar o vaticínio de que os filmes nacionais eram mal feitos.

Ora, o Brasil dos anos 60, 70 e 80 era um país fechadíssimo à influência externa, e, como hoje, gerador de uma rica cultura própria, na qual o cinema foi só uma parte do todo. Logo, a visão histórica (e estética) que podemos ter do cinema brasileiro – e de grande parte da cinematografia do terceiro mundo – é a de entidade singular, que – obviamente – permeada pela influência estrangeira, gera uma linguagem nova, um universo novo, que não significa o cinema de Hollywood nem o cinema europeu, mas um terceiro híbrido que não precisa ser analisado pela sombra dos outros dois, sob pena de criarmos uma visão colonizada e subserviente da nossa cinematografia.

Um segundo passo para a melhor assimilação do cinema brasileiro é libertarmos o ethos artístico do viés ideológico, o que no fundo depende de certo amadurecimento da sociedade brasileira como um todo. Dividir a filmografia nacional entre "conscientes" e "alienados" pressupõe uma tomada de posição que não representa dialética, mas obediência. Criar arte política é saudável, algo inerente ao ser humano, mas exigir que toda e qualquer arte seja de debate ou resistência é um patrulhamento tosco.

Jece Valadão, falecido recentemente, encarnava de certa forma este paradigma de isolamento, descrença e estereótipo, dos cineastas "malditos por serem populares". Paradoxo que, só com manual de instruções sobre a cultura brasileira, um pesquisador estrangeiro será capaz de compreender.

Jece não é o único a sofrer essa injustiça. Estão aí, vivos e vendendo saúde, alguns representantes da sua espécie: Carlo Mossy, David Cardoso, José Mojica Marins e mais uma meia dúzia de realizadores que, longe da unanimidade dada a outros sem qualquer merecimento, ainda lutam por trabalho e aceitação artística, quando não passam até dificuldades financeiras e materiais.

A trajetória de Jece Valadão nos oferece combustível suficiente para uma análise precisa dessa inversão de valores. No início, quando produziu e estrelou "Os Cafajestes", em 1962, aos 32 anos de idade, o jovem ator recebeu no país as impressões mais furibundas, muito por conta das cenas "amorais" de nudez e consumo de drogas. Mas bastou que o filme fosse aclamado em festivais internacionais para que uma parcela provinciana dos críticos reconsiderasse posições.

Sem a mesma sorte, grande parte de suas empreitadas seguintes, à frente da Magnus Filmes -- principalmente a partir da segunda metade dos anos 60 --, conjugava o dilema de "fracasso de crítica, sucesso de público", o que, cá entre nós, foi pior para quem não viu com atenção "Mineirinho, Vivo ou Morto" ou "Os Raptores".

Sobre a Magnus, a Filme Cultura de novembro de 1968 explicava: “Todo um andar (o último) de um edifício na Avenida Princesa Isabel n. 150 em Copacabana: escritório, salas de montagem, de gravação sonora, de revelação de stills fotográficos, enfim, setores de publicidade e de contabilidade, tudo bem organizado como manda o figurino de uma empresa industrial. Assim está montada a Magnus Filmes de Jece Valadão”.

Adentrando os anos 70, ele fez mais e melhor, em thrillers explosivos, comédias adaptadas da literatura brasileira e afiadas crônicas de costumes. A maioria destes passam regularmente no Canal Brasil, onde podemos constatar o óbvio: é cinema popular, feito para angariar público, mas de ótima qualidade. Entretenimento com propósitos comerciais sim, mas e daí? Para quem estava distante das benesses da Embrafilme naqueles anos de exceção, se um filme não desse retorno, não poderia fazer outro. Assim, com recursos controlados, dificilmente erravam.

Um dos melhores filmes da Magnus talvez seja "A Noite do meu Bem" (1968), biografia romanceada da cantora Dolores Duran, estrelada por Joana Fomm e Carlos Eduardo Dolabella. Afirmo que talvez seja, pois pratico aqui, pela primeira vez, um exercício de suposição: nunca tive a oportunidade de vê-lo. Nem eu, nem quase ninguém que não estivesse com dezoito anos em 1968. Afinal, o filme foi caçado em praça pública e nunca relançado sequer em vhs. Motor para o sensacionalismo hipócrita do apresentador Flávio Cavalcanti, se quisermos saber algo mais sobre "A Noite do Meu Bem" precisaremos confiar na memória de quem esteve no lugar certo e na hora certa das parcas exibições.

Gente como o cineasta Afrânio Vital, que garante ser esta tour de force de Jece (que também o roteiriza e dirige) um dos melhores filmes brasileiros já feitos -- e sendo ele mesmo, Afrânio, um mito do cinema brasileiro sem que quase ninguém saiba disso, a informação tem toda a confiabilidade, a ponto de eu transcrevê-la aqui.

Afrânio, com sua verve característica, descreve o filme para nós: "A sequência final dá uma dica da importância da obra de arte feita por Jece. Dolores Duran, no quarto, coloca um disco na vitrola, sua imagem solitária no apartamento vazio, a faixa do disco repetindo diversas vezes... Ai, a solidão vai acabar comigo... Ela morta sobre a cama, o apartamento entre muitos em Copacabana, a luz da janela do prédio entre muitos prédios da Copacabana noturna dos anos 60. Copacabana vista do alto em planos, distanciando-se cada vez mais, e por fim a Terra vista da Lua nos fazendo lembrar as inquietações de Marcelo em 'As Amorosas', ante à pequenez do humano na imensidão do mundo. Se tudo isso não basta, só a interpretação magistral de Joana Fomm jovem fazendo Dolores é o bastante para não se impedir a revisão desta obra de arte."

Com certeza, "A Noite Do Meu Bem" jaz depositado em algum lugar bem longe dos olhos para quem ele foi feito: o público e as futuras gerações. Talvez nem esteja mais lá quando precisarmos dele. Aliás, já precisamos e não sabemos, porque não podemos assisti-lo. E sem podermos assisti-lo, ele permanece esquecido, assim, por quase quarenta anos.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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