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quinta-feira, 24 de junho de 2010

VERA


Paulo Francis, o jornalista e polemista que tantos amam ou odeiam, costumava dizer que não entendia o cinema brasileiro, pois nos filmes tudo parecia um programa de tv, sem long shots, usando-se no máximo o plano americano. Talvez Francis não conhecesse o cinema do Beco da Fome, da Boca do Lixo, e se baseasse apenas na observação do cinema da época em que produziu este vaticínio (anos 80), quando de fato, os filmes começaram a sofrer a influência nefasta da linguagem das novelas de tv.

Apesar de produzido em 1986, “Vera” seria uma exceção à regra, daquelas que Francis poderia ter saudavelmente se disposto a olhar. Não se parece com um Caso Especial ou um néon-realismo plastificado. “Vera” conta uma história plausível, com todos os questionamentos que cercam a vida de uma ex-interna da FEBEM – a Vera do título (Ana Beatriz Nogueira).

Abandonada na instituição aos 14 anos, a menina vive uma daquelas situações típicas do sistema corretivo em qualquer parte do mundo. Quando aos 18 é obrigada a enfrentar o lado de fora, acaba cuspida sem qualquer referência, nada sabe fazer e suas tentativas de socialização esbarram na realidade indiferente e competitiva da vida real.

Para piorar seu choque de inadequação, Vera sempre gostou de mulheres, sempre conviveu com mulheres, sempre vestiu-se e racionalizou o mundo de forma masculina, amante protetora das colegas. “Não sou Vera, sou Bauer”, repete insistentemente, sem entender o choque e o deboche que provoca.

Levada pela mão de um tutor, Dr. Paulo Trautman (Raul Cortez), Vera acaba por ganhar um emprego e um quarto para morar. Não há nela nenhum impulso maligno, nenhuma perversão – mas as pessoas insistem em ver em sua masculinidade uma ameaça, piorando seu conflito. Assim, Vera (ou Bauer) vai sendo acuada, ridicularizada, até que desiste de se esquivar e em metáfora inteligente, abdica da vida no banheiro da casa do Dr. Paulo, quando pela última vez procura-o em desespero.

Na vida real, o Dr. Paulo Trautman atende pelo nome de Eduardo Suplicy – sim, o senador da República. No início dos anos 80, Suplicy ajudou Sandra Mara Herzer, a autora do livro em que parcialmente baseia-se o filme.

Erroneamente, criou-se o mito de que “Vera” é um filme de temática lésbica – consta em dez entre dez listas de filmes sobre o assunto. Alguns até acrescentam ser “o primeiro filme que discute o lesbianismo no Brasil”. Nada mais enganoso: a menina Vera é na verdade uma transexual e o título de primeiro filme a debater o lesbianismo no país pertence a “Amor Maldito”, modesta produção de 1984 dirigida por Adélia Sampaio.

Entender a personalidade de Vera me parece algo mais complexo do que aceitar sua orientação sexual, que apenas na superfície é o amor entre iguais. Bauer se julga um homem, age como tal e a masculinidade que reflete é aquilo que se pode chamar de “proteção contra o mundo”. Quando arruma uma namorada, Clara (Aida Leiner), Vera age exatamente como um homem ignorante (e machista) agiria. Sente insegurança de ver sua mulher conversando com outros rapazes, apregoa que “mulher sua não faz aquilo”. Na cama com Clara é um bichinho acuado, receoso de tirar a roupa e mostrar a “vergonha” de seus seios e sua vagina.

No desenrolar dos flashbacks no internato temos Carlos Kroeber – em outra grande atuação, geralmente esquecida no filme pela presença de Ana Beatriz Nogueira – que encarna o diretor da instituição. É um personagem muito interessante, capaz de nos fazer refletir sobre o sistema de confinamento de crianças – tanto ou mais do que os guardas e inspetores de “Pixote”, o clássico de Hector Babenco. Aqui o servidor do estado cita frases soltas, decoradas dos manuais de pedagogia, e apesar da superfície paternal, basta a conversa começar para que lhe baixe o espírito sádico, pisando no crânio de quem tenta qualquer espécie de argumentação.

Vera-Bauer seria um produto desse meio sórdido e autoritário? Seus conflitos se instalam à medida que sua auto-estima enquanto mulher é achatada pela agressividade das colegas? Responder sim a esses questionamentos é simplificar tudo e desmerecer um universo rico de possibilidades. O cinema comercial norte-americano afirmaria que sim, Vera se tornou “homem” porque esta era sua estratégia de sobrevivência. O cinema francês (ou mesmo o britânico) deixaria em aberto essa questão, se limitando em documentar a narrativa. Já o filme brasileiro dos anos 80, tonto pelo híbrido das influências recebidas de todos os cantos, oscila entre simplificações veementes e o distanciamento documental.

Pelo papel Ana Beatriz Nogueira recebeu o Urso de Prata em Berlim, mas estranhamente não teve a possibilidade de repetir o mesmo desempenho em outros filmes. O fato é que Ana Beatriz inunda “Vera” com a atenção a detalhes importantíssimos, como a postura corporal e a melancolia ancestral, paralisante.

Já havia se passado uma década, desde os Super-Oitos que o diretor Sergio Toledo gravava com Roberto Gervitz – diretor de “Feliz Ano Velho” – em meados dos anos 70. Com Gervitz, Toledo acompanhou in loco as manifestações do ABC paulista, no documentário “Braços Cruzados, Máquinas Paradas” (1979) – não se enganem pelos créditos; assinava “Sergio Segall”. Em 1978, foi assistente de montagem de Maurício Wilke, em “Paixão e Sombras”, de Walter Hugo Khouri.

Tentar uma aproximação entre “Braços Cruzados...” e “Vera” seria tarefa infrutífera, a menos que se considere que ambos tratam dos sans-culotte. “Vera” demonstra um mistério, uma sensação claustrofóbica no interior de uma única pessoa, ao contrário dos espaços amplos do tratado sindicalista. E no contexto de alta sensibilidade de Toledo, colaboram também o tom lúgubre da fotografia (Rodolfo Sanchez) e o testemunho de Sandra Herzer. Como vêem, sob muitos aspectos “Vera” tornou-se em vinte anos um clássico admirável.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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