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quinta-feira, 24 de junho de 2010

BAIXO GÁVEA


Baixo Gávea é um pequeno território da zona sul do Rio. Dizem, por convenção, que começa na Praça Santos Dumont e termina na Rua José Roberto Macedo Soares. Mas há os que crêem ser o Baixo um estado de espírito, um continente aberto, algo indecifrável, sem princípio nem fim.

Ali perto, a algumas quadras, descendo a rua Marquês de São Vicente, encontram-se os pilotis da PUC, o campus que é parte da geografia amorosa da cidade, refúgio de algumas das melhores cabeças brasileiras que lá estudaram e ponto de encontro para várias gerações de cineastas. Na PUC formaram-se, por exemplo, Cacá Diegues, David Neves, Arnaldo Jabor e, quem nos interessa no momento, Haroldo Marinho Barbosa – na turma de 1967 de engenharia mecânica!...

Haroldo escreveu, dirigiu e produziu “Baixo Gávea” (1986), longa que reflete uma parcela dos freqüentadores do Baixo: artistas, consumidores de etil, boêmios que voltam pra casa a pé, citando Kant no meio do caminho. No filme não há Kant, há Fernando Pessoa, personagem da peça de teatro encenada pela diretora Clara (Lucélia Santos), que tem no elenco Ana (Louise Cardoso), atriz lésbica com quem divide uma casa nas redondezas. Ana vive Mário Sá Carneiro, poeta português, amigo de Pessoa, interpretado por Rui (Carlos Gregório). Wilson Grey, grande ídolo do cinema nacional, mártir da causa, aparece como “Seu Wilson”, faxineiro do teatro.

A trama se divide entre o acompanhamento diário da peça, o dia-a-dia dos bastidores, e o mundo de Clara e Ana fora do trabalho. A primeira, procurando o Príncipe Encantado – sob a fachada de mulher independente, que acorda com um estranho num quarto de motel --; a segunda, morrendo de vontade de agarrar a amiga, mas contentando-se com a fama de má, perseguidora de “gatinhas” – calma, o filme é de 1986 – inocentes.

José Wilker aparece como o personagem esquisitão, que manda bombas pelo correio – vício da geração que sobreviveu ao atentado do Riocentro, três anos antes? – e consegue inclusive estuprar Clara, numa cena em tomada bastante esquisita, que possivelmente refletiu o mal-estar dos atores. Como pode haver relação sexual entre dois seres humanos, se um mantém mais de dois palmos de distância do outro? Estavam abraçados, vá lá, mas não convence. Menos ainda o papo entre ambos depois da curra, como se pouca coisa tivesse acontecido. Não se trata de subversão da linguagem cinematográfica, uma zombaria godardiana, mas certa falha no filme que, de resto, é delicioso.

Já em "Engraçadinha" (1981) Marinho tratava com sensibilidade o universo feminino, que ganhava na protagonista, Lucélia Santos, uma encarnação interessante de um dos mais famosos tipos rodrigueanos: a mulher suburbana. Darlene Glória, Geni em “Toda nudez será castigada”, era cruel, manipuladora, vingativa; Lucélia Santos, como Engraçadinha, era diabólica, prepotente, dissimulada.

Louise Cardoso ainda se consagraria em “Leila Diniz” (1987), dirigida por Luiz Carlos Lacerda. Professora do Grupo de Teatro Tablado, de Maria Clara Machado, é dessas atrizes que apaixonam e habitam um pedaço da nossa memória.

Em “Baixo Gávea” as personas de Lucélia e Louise, como atrizes, ganham as telas com grande autoridade. Olho para elas e me lembro do onipresente “Ciranda, cirandinha”, que volta em círculos quando se contempla a geração de fins dos anos 70. “Baixo Gávea” é o veículo perfeito para a vida na metrópole sonhadora, quando os herdeiros das Diretas-Já, chegando aos trinta, batalhavam arte e liberdade sexual, anos antes do neo-conservadorismo estúpido deste início de século.
Texto escrito por Andrea Ormond, publicado no blog Estranho Encontro (http://www.estranhoencontro.blogspot.com).

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